Ao contrário do que possa parecer, a chegada do vírus da SARS-CoV-2 não fez aumentar a atividade dos nossos serviços públicos de saúde. É verdade que, pontualmente, nas unidades de cuidados intensivos e nalguns serviços de medicina interna, se registaram momentos de alta pressão, exigindo inclusive a transferência de doentes para outras unidades. Do mesmo modo, a Saúde Pública sentiu a pressão inusitada de ter que avaliar e acompanhar riscos associados aos percursos de milhares de doentes e casos suspeitos, pelo que também aqui o trabalho foi excecionalmente superior.
Mas, no essencial da atividade do SNS, designadamente em cuidados de saúde primários e hospitais, os resultados dos últimos dois anos mostram-nos justamente o contrário, ou seja, uma acentuada diminuição dos cuidados prestados e, surpreendentemente, um significativo crescimento das despesas, designadamente com recursos humanos. Tivemos, por isso, custos mais elevados, para um volume de prestações bem menor.
Já muito se escreveu e comentou sobre o tema, naquela expressão tão repetida de “deixar os outros doentes para trás” para prestar assistência aos doentes Covid, o que acarretou atrasos nos diagnósticos, nos tratamentos e, naturalmente, a falta de acesso de muitos cidadãos aos cuidados de saúde. Esta verdade teve, com sabemos, causas várias, umas do lado da oferta, outras do lado da procura, que convirá recordar. Aos primeiros surtos de Covid, e perante o desconhecimento do vírus, todos receamos o pior e aceitámos como inevitável as medidas de confinamento. Os próprios serviços de saúde, numa atitude preventiva, criaram corredores especiais para os casos Covid e cancelaram atividade já programada, com receio de contágios dentro das instituições. Do lado da população, este cenário concorreu para aumentar o medo de sair de casa e procurar as instituições de saúde, preferindo, nalguns casos, suportar o desconforto ou o sofrimento, para se proteger contra o vírus.
Os resultados desta situação traduziram-se na súbita e brutal redução da procura e, consequentemente, da atividade dos serviços, nalguns casos por iniciativa própria das administrações e dos responsáveis clínicos. Logo no mês de março de 2020 (tivemos o primeiro caso de covid a 2 de março) as quedas na procura de urgência foram superiores a 40% face ao mesmo período do ano anterior, as cirurgias caíram nalguns casos cerca de 60%, as consultas presenciais em centros de saúde quase que foram suprimidas, os internamentos e os exames complementares, mesmo os pedidos a entidades convencionadas, diminuíram na mesma ordem de grandeza. A própria vida económica e social contribuiu para estas diminuições, porque o país ficou em casa, os movimentos das pessoas e o trabalho foram fortemente afetados e os acidentes e outras ocorrências do quotidiano se reduziram e deixaram de “alimentar” os serviços de urgência.
Esta nova realidade foi-se mantendo ao longo dos meses seguintes, com sinais de recuperação no 3º trimestre do ano. Mas tudo se precipitou de novo, a partir de novembro, com a 2ª vaga e o regresso do confinamento mais severo.
Em 2021 registou-se um esforço de retoma da atividade normal dos serviços de saúde, com alguns resultados bem visíveis, mas com extrema dificuldade em absorver a procura que em 2020 tinha ficado sem resposta e agora, eventualmente, com situações mais agravadas.
Valerá a pena deixar aqui alguns números que nos ajudem a ilustrar o que se passou nestes dois últimos anos, tomando por base o ano de 2019:(*)
- As consultas caíram significativamente nos cuidados primários (cerca de 40% em 2020 e 43% em 2021). Surpreende, não só esta descida pronunciada, mas sobretudo o facto de 2021 não ter representado um ano de inversão de tendência, sendo pelo contrário um ano de consolidação de descida. É certo que as chamadas “teleconsultas” cresceram inusitadamente em 2020 e 2021, mas muitas delas, apesar de assim classificadas, foram simples e breves conversas via telefone, úteis com certeza, mas sem a carga de trabalho e a definição diagnóstica ou terapêutica mais adequadas.
- As consultas hospitalares diminuíram mais de 10% em 2020 e recuperaram para valores de 2019 no último ano (+0,28%). As consultas para novos doentes (a grande maioria é referenciada pelos cuidados de saúde primários, que por sua vez diminuíram muito as referenciações) foram as que mais caíram, com menos 17% em 2020 e menos 1,2% em 2021, na comparação com 2019. Já as consultas para doentes de continuidade, baixaram 8,1% em 2020, mas recuperaram praticamente para os valores de 2019 no último ano (+0,07%). Importa salientar que a realização de consultas dentro do tempo adequado tinha diminuído cerca de 38% em 2020, mas em 2021 registou-se uma sensível melhoria, tendo ficado, mesmo assim, àquem dos níveis de adequação de 2019 em 4,5%.
- Os internamentos hospitalares baixaram mais de 14% em 2020 e cerca de 8% em 2021, face a 2019, concorrendo para uma forte redução na ocupação das camas (94% em 2019, 80,5% em 2020 e 79% em 2021). Apesar dos doentes covid, no pico da 3ª vaga, ocuparem em simultâneo cerca de 7 mil camas no mesmo dia, a oferta restante (cerca de 14 mil camas) manteve uma ocupação discreta, assim se explicando a redução de doentes tratados no conjunto da lotação hospitalar.
- O movimento cirúrgico diminuiu cerca de 20% em 2020, recuperando em 2021 para valores um pouco superiores aos verificados em 2019 (+0,4%). Foi um esforço assinalável de retoma das intervenções cirúrgicas mas, mesmo assim, sem capacidade de responder a uma nova procura que se juntou aos casos que ficaram para trás em 2020. Convirá distinguir aqui os bons exemplos de alguns hospitais que conseguiram em 2021 ultrapassar o movimento cirúrgico de 2019, criando incentivos, mobilizando blocos operatórios no setor privado em regime de outsourcing e recuperando, assim, muitos doentes que foram cancelados em 2020. O Hospital de S. João, no Porto, foi talvez o melhor exemplo, tendo inclusive disponibilizado intervenções cirúrgicas para outros hospitais do SNS, em regime de vale-cirurgia, evitando assim a transferência de doentes para o setor privado.
- As urgências hospitalares desceram globalmente 30% em 2020 e 20% em 2021, tomando como referência o ano de 2019. Aparentemente seriam bons resultados, porque um sistema de saúde que responde adequadamente não tem a pletora de utentes em urgência que Portugal apresenta. Ao ver a afluência às urgências a baixar poderíamos ficar esperançados de que seria agora que passávamos a entrar no primeiro mundo. Pura ilusão. Foi tudo muito circunstancial. As respostas às pequenas afeções continuam a não existir na comunidade e os serviços de urgência rapidamente retomaram a sua trajetória explosiva, como se constata nos últimos dias, para nos lembrar que o nosso sistema continua a sofrer dos mesmos problemas de acesso e de organização.
Nestas condições, em que se verificou uma forte descida na atividade do SNS, apesar da Covid, seria de imaginar uma menor utilização de recursos. Não foi isso que ocorreu. As despesas com pessoal subiram mais de 11% em 2020 e mais de 16% em 2021, com base em 2019.O número de profissionais subiu genericamente em todas as categorias. Face a 2019, o crescimento de efetivos, no SNS, variou, em 2021, entre os 6% na classe médica, 10% nos enfermeiros ou 14% nos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica. Alguns destes novos efetivos serviram para colmatar o aumento crescente de dias de ausência ao trabalho (em 2020 mais 23% e em 2021 mais 25%), bem revelador da insatisfação, das questões resultantes do confinamento no apoio familiar, do cansaço ou até do medo dos profissionais, face ao desenvolvimento da pandemia. Também é verdade que em algumas valências foi necessário criar equipas em espelho o que pode ter obrigado a algum aumento de efetivos. Mas nada, à priori, justificaria aquele crescimento num tempo de decréscimo de atividade. Mais impressionante ainda foi o aumento brutal registado em horas extraordinárias. Só em 2021,e até outubro, o volume de horas já tinha ultrapassado o valor global de todo o ano de 2020, com uma média mensal de 1,9 milhões de horas pagas. Do mesmo modo, é também preocupante o aumento do volume de horas de trabalho médico, proveniente de empresas de trabalho temporário, que todos parecem querer combater, mas que continuam sempre a aumentar. Em 2021, e só até setembro, foram contratualizadas 3,6 milhões de horas, maioritariamente dedicadas aos serviços de urgência, num valor de 105,7 milhões de euros. Estes valores são superiores aos verificados em todo o ano de 2020.
Como corolário de tudo isto, as despesas correntes do SNS foram em 2020, 10% superiores às registadas em 2019, o que representou um esforço adicional de mais 992 milhões de euros. Mas em 2021, tal aumento, relativo a 2019, foi de cerca de 13%, ou seja, mais 1.284 milhões de euros. Mais recursos gastos, mais profissionais e mais despesa ocorreram, assim, em dois anos de recessão da atividade dos serviços públicos de saúde. O SNS foi particularmente competente a tratar os doentes covid, mas não teve a resiliência para tratar os restantes, apesar do aumento sensível de recursos. As duas dimensões mais importantes em saúde, a efetividade e a eficiência, saíram fortemente beliscadas neste dois últimos anos.
Devemos tirar desta conclusão os ensinamentos para fazer melhor já a seguir. O SNS demonstrou uma enorme capacidade de resposta à Covid, mas mostrou também uma forte rigidez na criação de condições de ajustamento às alterações da procura. As escalas de serviço permanente não foram revistas em baixa como se impunha, e a composição das equipas continuou a reger-se pelos mesmos padrões de procura. Não se registou, assim, nem a redução de horas de empresas médicas, nem de horas extraordinárias, como seria plausível esperar. Viveu-se, infelizmente, um período de doce desperdício. Precisamos de mais gestão, mais liderança e mais coragem. São sobretudo estes os principais desafios que o próximo governo vai ter que encarar, cedendo menos à pressão das corporações e investindo mais em novos modelos de gestão. Ir atrás do discurso ilusório de que precisamos de mais e insaciavelmente mais recursos humanos na saúde (como Catarina Martins fez no debate com António Costa, citando “ad nauseam” a dupla Arnaut/Semedo) é um grave erro político que perdurará até ao infinito, se não pararmos para refletir sobre o essencial: a capacidade de gestão, num modelo integrado de cuidados, os instrumentos de avaliação, a criação de incentivos, a organização dos serviços e os horários de trabalho. Com os recursos que temos podemos fazer bem mais e bem melhor.
(*) algumas das comparações são de janeiro a novembro, para cada um dos anos em referência, não alterando, no entanto, as tendências de evolução (cf. SNS – Portal da Transparência)
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS – CoV -2 (98ª semana – 9 a 15/janeiro, 2022)
Assistimos, na passada semana, a um significativo agravamento de todos os indicadores, com exceção do referente ao número médio de doentes internados em cuidados intensivos, que embora subindo, apresentou uma taxa de crescimento baixa, de 5,76%. Ao contrário do que vinha sucedendo, a mortalidade subiu cerca de 56% esta semana, aproximando-se dos 26 óbitos em média diária, muito acima já dos limites inicialmente traçados (15 óbitos). Registamos também uma forte subida na positividade dos testes realizados que saltou de 9 para 14%, numa semana (utilizamos como limite aceitável os 3%). O número de novos casos diários – a maior preocupação – continua a crescer de forma brutal, pese embora tal se verifique a um ritmo decrescente nas últimas duas semanas (46% e 37%, respetivamente).
. ÍNDICE: 3,2728
.TENDÊNCIA: forte subida
. COR DO SEMÁFORO: vermelho
. DIMENSÃO PIOR: número de novos casos
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes em unidades de cuidados intensivos
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.