Também sei que o homem não é um santo (quem o será?), e que estará a pagar em parte também pela forma como lidou com a magistratura e os jornalistas enquanto primeiro-ministro, para lá dos seus erros.
Mas a verdade é que aquilo que nos define como país é, entre outras bases, o chamado estado de direito, um dos princípios civilizacionais mais inquestionáveis. Isto significa que todos os cidadãos são teoricamente iguais perante a lei, mas também que os agentes do sistema de justiça são idóneos, íntegros e isentos. Daí se dizer que a Justiça é cega.
A realidade é outra. Desde logo porque há uma justiça para os que têm posses e outra para o resto da população, como qualquer pessoa minimamente informada pode observar. Depois porque o sistema judicial ainda é muito sensível à rua, isto é, à opinião publicada. Só assim se compreendem as fugas de informação para a imprensa sobre operações de detenção de figuras públicas e operações de busca, tal como a vergonhosa e persistente fuga de informações em segredo de justiça sempre em benefício das teses do Ministério Público, mas também a presença mediática de advogados que falam constantemente à comunicação social em defesa dos seus constituintes.
Uma das necessidades mais prementes de revitalização da vida púbica e da ética social é a famigerada reforma da Justiça portuguesa que nunca mais acontece. Ainda vivemos com excesso de garantismos por via do histórico dos tribunais no tempo da ditadura. Porém, há garantias básicas que nada têm que ver com isso. É o caso do princípio do “juiz natural”, isto é, da escolha não manipulada de um determinado juiz em razão de possíveis intenções esconsas e objectivos escondidos, em nome da transparência e lisura.
Soube-se há dias que o processo de atribuição de juiz de instrução no caso Marquês feriu tal princípio e levantou suspeições. O Conselho Superior da Magistratura (CSM) veio agora admiti-lo mas sem retirar as devidas consequências e a Ordem dos Advogados (AO) lamentou e registou o facto, além do próprio arguido mais mediático deste processo vir contestar em carta aberta o referido procedimento da justiça e com toda a razão, goste-se ou não da personagem.
Entretanto passaram cinco longos anos entre a defesa do procedimento, feita pelo CSM em registo corporativista e a assunção de que, afinal, as coisas não tinham corrido bem. Como diz Sócrates: “O relatório admite, finalmente, que no dia 9 de setembro de 2014 a distribuição do processo Marquês foi manipulada e falsificada. Não foi feita por sorteio, não foi feita com a presidência de um juiz, não foi feita de modo a garantir igualdade na distribuição de serviço.”
Aquilo que durante todo este tempo o CSM defendeu como normal e legal chama agora “irregularidade procedimental”, mas o certo é que pisou as garantias constitucionais a que qualquer cidadão tem direito. Por acaso estamos a falar de um antigo primeiro-ministro que se defende em público mas podemos pensar em tantos indivíduos anónimos a contas com a justiça e que não dispõem de palco mediático, limitando-se a comer e calar. Talvez se aplique aqui a máxima de Demócrito: “Se sofrer uma injustiça, console-se. A única infelicidade é cometê-la”.
O juiz que recebeu o processo de forma ilegal (porque a lei não foi cumprida) e inconstitucional (porque a constituição foi ferida) é o mesmo que as redes sociais da extrema-direita aclamam como herói (que tendência lusitana mais bacoca para inventar heróis…) e que foi convidado para discursar numa conferência ao lado dum personagem altamente polémico e suspeito como Sérgio Moro (cujas manobras já começaram a ser reveladas). O mesmo que deu uma entrevista a dar piadas de muito mau gosto ao arguido José Sócrates (processo que tinha na mão) sem o nomear, o que permite questionar legitimamente a sua suposta independência.
O facto é que os processos considerados “mediáticos” foram praticamente todos entregues na mão de Carlos Alexandre, atribuídos de forma irregular (segundo o CSM) ou fraudulenta (segundo o arguido), por uma escrivã que ali tinha começado a prestar serviço ao que parece por “sugestão” daquele juiz. Com que intenção? Bem sabemos que o tiro ao político, isto é, a quem desempenha cargos políticos, é um desporto nacional promovido pela imprensa tabloide. Ainda agora tivemos o caso do ex-ministro Azeredo Lopes, que durante anos foi queimado em lume brando e usado pela oposição com arma de arremesso político. Afinal saiu absolvido de qualquer crime e até o Ministério Público em sede de julgamento pediu a sua absolvição.
Ninguém duvida que o país tem direito a um sistema de justiça célere e eficaz, mas também isento. O cerne da questão não é Sócrates mas o país que somos, cuja justiça parece ter dificuldade em tratar de forma imparcial tanto um antigo primeiro-ministro eleito duas vezes por milhões de portugueses, como o cidadão anónimo que não tem voz.
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