Passamos o primeiro ano completo sob o signo da Covid. Foram 12 meses consecutivos em que o vírus exerceu a sua influência sobre o país e os portugueses, mobilizando recursos específicos e determinando a nossa vida individual e coletiva em todos os domínios: economia, emprego, ensino, férias e lazer, hábitos de mobilidade, ação política e, sobretudo, saúde.
Tivemos cerca de 976 mil novos casos, e mais de 12 mil mortos por Covid, o que resultou numa taxa de letalidade para 2021 de 1,23%, relativamente baixa no contexto internacional e que foi diminuindo lentamente ao longo do ano.
I
No ano de 2021 tivemos 3 vagas bem delimitadas da SARS – CoV-2: 1ª) de 1 de janeiro a meados de fevereiro; 2ª) de meados de junho a meados de setembro; 3ª) de meados de novembro até ao final do ano. Foram vagas com expressão e duração diferentes, mas sobretudo com impactos bem diferentes:
- Na primeira vaga, com a duração de cerca de 6 semanas (mais o tempo já transcorrido do final do ano anterior) atingimos os seguintes valores máximos diários: 16432 novos casos, 303 óbitos, 6869 doentes internados, 867 dos quais em cuidados intensivos;
- Na segunda vaga, incomparavelmente a mais pequena, mas a mais longa (cerca de 12 semanas) tivemos valores máximos diários de 4736 novos casos, 18 óbitos, 968 doentes internados, 204 dos quais em cuidados intensivos;
- Na terceira vaga, ainda em curso, e já com 6 semanas de duração, tivemos já 30.829 novos casos num dia, 25 óbitos, 1034 doentes internados, 155 dos quais em cuidados intensivos.
Percebem-se claramente as diferenças entre estas vagas: a primeira e a última, expressando a força do contágio do vírus, e a do verão refletindo um pequeno planalto, relativamente com poucos casos e facilmente controlável. Mas o mais interessante é quando olhamos para os indicadores de gravidade: muito mais óbitos e muito mais doentes internados e doentes críticos na primeira vaga do ano e um nível de gravidade sempre a diminuir à medida que a vacinação se alargava a toda a população. Comparando esta última vaga com a do princípio do ano, temos hoje um pico de casos diários 88% superior, mas apenas 8% dos óbitos, 15% dos internados e 18% dos casos críticos.
Na realidade, o facto de a esmagadora maioria da nossa população ter aderido ao processo de vacinação contra a Covid, protegeu-a contra os maiores riscos do vírus: a morte ou a ocorrência de situações graves ou complexas. Importa, aliás, clarificar que as vacinas não nos protegem contra o contágio, como a certa altura parecia ser o entendimento da população em geral. O que a vacina faz é criar anticorpos que resistem ao vírus e impedem o desenvolvimento dos seus efeitos mais adversos. Mas um cidadão vacinado não deixa de poder contrair a doença e ser seu transmissor. Penso que a DGS e o ministério da saúde, deveriam esclarecer correta e repetidamente este mecanismo, porque a sensação de imunidade ao vírus que um vacinado possa ter, torna-o mais despreocupado, com tendência para maior socialização e à vontade no contacto com os outros. Não se sente doente (e não está de facto) mas pode, sem saber, ser portador do vírus e passá-lo a outras pessoas, até no contexto familiar. Daí a importância da testagem sistemática e em condições de rigor e confiança. A força transmissora da nova variante (Ómicron) torna muito mais fácil o contágio, ainda que com baixa gravidade, como estamos a assistir, de forma avassaladora nos últimos dias, e apesar de estarmos maioritariamente vacinados, já com a dose de reforço. Os grupos antivacinas têm aqui um pseudo – argumento que vai fazendo o seu caminho, se as autoridades de saúde não prestarem os esclarecimentos devidos.
II
Na dimensão política, assistimos, como em 2020, às mesmas posições titubeantes e até anti-confinamento, por parte da maioria dos partidos políticos, votando contra ou abstendo-se em relação à declaração dos sucessivos estados de emergência com que fomos confrontados. Enquanto à esquerda se apelava a mais recursos para a saúde, como se a prevenção não fosse o principal antídoto contra a Covid, os liberais realizavam festas populares em plena vaga pandémica. Nunca se percebeu bem o que levou a comportamentos, por vezes tão coincidentes, entre forças políticas com ideias aparentemente opostas. Parecia haver uma concorrência entre os políticos para ver quem tinha mais argumentos contra as posições oficiais, ora porque as reuniões do Infarmed deviam acabar, ora porque o confinamento era medroso, mas depois excessivo, ora porque queriam travar a vacinação das crianças, ora porque queriam uma nova matriz de risco.
O início da vacinação foi um período cheio de peripécias, com um plano irrealista e mal estruturado, que permitiu abusos e fez atrasar o seu progresso. Mas depois conseguimos recuperar o tempo perdido e tornamo-nos no país do mundo com níveis mais elevados de vacinação. Na matriz de risco continuamos, afinal, com o mesmo modelo, nos indicadores e na apresentação, apesar do alerta da Ordem dos Médicos que propôs, inclusive, uma nova matriz. Só não se percebe porque é que a Ordem nunca apresentou devidamente os seus critérios e dimensões de risco e nunca publicou, pelo menos semanalmente, a sua versão alternativa. Valeria a pena, porque a atual matriz não tem, manifestamente, grande compreensão ou utilidade, nos tempos que correm (cf. o índice sintético de risco que venho semanalmente publicando nesta rubrica, desde meados de julho, e que dá, efetivamente, uma perspetiva bem diferente da Covid).
Apesar das hesitações e alguns erros de percurso, de que os exemplos do futebol (final da Liga dos Campeões no Porto e comemorações da vitória do Sporting na primeira Liga) são paradigmáticos, o governo e especialmente o ministério da saúde, estiveram à altura das circunstâncias, parecendo até que o PS ganhou uma nova estrela para o combate político – Marta Temido. O prestígio que atingiu revela bem o seu acerto no essencial da condução política, apesar do erro de avaliação cometido por todo o governo em dezembro de 2020, com consequências catastróficas nos primeiros dois meses de 2021.
A pressão da Covid sobre os serviços de saúde e designadamente sobre os hospitais foi praticamente inexistente após janeiro/fevereiro, repito, graças à vacinação. Mas estas instituições recuperaram pouco do que se tinha perdido em capacidade de resposta em 2020. Esperar-se-ia a mobilização de todos os recursos, a criação de planos dedicados à limpeza das listas de espera, com remunerações especiais e incentivadoras, e uma atitude proactiva face aos doentes que ficaram para trás em 2020. Verificamos uma recuperação sensível, é certo, mas longe de resolver os graves problemas de acesso então criados. Neste final de ano, com uma procura pouco pertinente a dirigir-se às urgências hospitalares, tivemos um recrudescimento importante desta linha de atendimento, precisamente o contrário do que deveria ser. Problemas de sempre que se mantêm e que têm nos cuidados primários, pouco resilientes e desorganizados, a sua principal origem. Só nos faltava, como parece ter acontecido, a linha SNS 24 encaminhar simples constipações para as urgências hospitalares.
Estamos hoje confrontados com a necessidade de mudar a forma como politicamente enfrentamos o vírus e lhe damos combate operacional. Apesar da subida brutal de novos contágios, a gravidade é substancialmente menor, também porque os mais idosos representam uma fatia cada vez menor dos infetados (cerca de 1,6% por dia, em média, na última semana). Será altura de libertar mais cedo do confinamento os casos sem sintomas ou de baixa complexidade e remeter para acompanhamento domiciliário e com o apoio dos enfermeiros de família essas situações. Devemos passar a encarar o vírus com outros olhos, como outro vírus ou patologia, com caraterísticas agora endémicas, e remeter para os cuidados de saúde primários os centros de acolhimento, tratamento e acompanhamento dos doentes. Ocupar os hospitais e os especialistas mais diferenciados com esta casuística é hoje inadequado, exceto, naturalmente, quando a evolução clínica dos doentes o justifique. Até porque com esse modelo estamos a pôr em causa outros doentes, porventura mais prioritários, e desperdiçar recursos hospitalares em urgências, que poderiam ter melhor aproveitamento para outros doentes.
III
Na frente financeira o SNS viu aumentar significativamente os seus gastos em 2021. A principal rubrica de despesa tem a ver com salários e remunerações (mais de 40% de toda a despesa corrente do SNS), e aqui registámos, só no acumulado do 3º trimestre, um aumento superior a 300 milhões de euros, o que representa mais 9,1% do que se gastou nesta rubrica, no mesmo período de 2020. O aumento de efetivos, significativo em médicos e enfermeiros, a abundância de horas extraordinárias pagas, por vezes sem justificação e apenas fruto do oportunismo de alguns e da desorganização e da autogestão das escalas de serviço, mostram bem o esforço do Estado para responder aos pedidos dos serviços, face e a pretexto da Covid. O que é facto é que a atividade médica diminuiu em 2020 e estabilizou em 2021, mas, em muitos domínios, não conseguimos repor os níveis de atividade de 2019. Gastamos muito mais em pessoal, mas com redução sensível da produtividade.
Os gastos com medicamentos sob a responsabilidade do SNS subiram cerca de 7% nos primeiros 3 trimestres de 2021, face a período homólogo do ano anterior. O crescimento foi particularmente sentido nos produtos farmacêuticos administrados ou cedidos nos hospitais, em que se incluem as vacinas contra a covid (+12% e superior a 1200 milhões de euros até setembro) e foi muito menos expressivo nos produtos vendidos em farmácia de oficina (aviamento do receituário ambulatório) com apenas 1,8%, mas representando mais de mil milhões de euros. Podemos induzir daqui, que os doentes crónicos que consomem medicamentos de uso exclusivo hospitalar, não terão sido prejudicados nos seus tratamentos e que as novas terapêuticas – geralmente mais eficazes mas mais caras – foram normalmente utilizadas. Importa dizer que os produtos farmacêuticos são a segunda rubrica de despesa do SNS, representando até setembro de 2021, mais de 26% do total das despesas correntes.
Uma nota especial para as áreas dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica e do material de consumo clinico, particularmente sensíveis nestes tempos de pandemia. Na primeira, que inclui toda a parte referente aos testes Covid, registamos um aumento brutal de despesa, superior a 32% nos primeiros 9 meses do ano, face ao mesmo período do ano anterior, e na segunda, com o peso dos equipamentos de proteção individual e de outros meios de proteção e desinfeção, a subida foi de 11%.
Em síntese, não terá sido pelo controlo das despesas de saúde que o SNS deixou de responder. Pelo contrário, fica a sensação clara de que os meios disponibilizados foram suficientes mas, infelizmente, em parte mal geridos, com áreas de desperdício, sobretudo no que toca à gestão dos recursos humanos.
Ao fim destes 12 meses consecutivos de convívio com a Covid, fica a sensação de que lhe fomos perdendo o medo, por cansaço e vontade de retomarmos a nossa vida normal. A economia deu sinais claros de recuperação e o turismo, sobretudo interno, compensou uma boa parte do que se tinha perdido em 2020. Infelizmente, acabamos o ano como o começamos, com uma grande vaga de novos casos, ainda que com repercussões muito menos significativas na vida dos infetados e na atividade dos serviços de saúde. O Governo deverá criar rapidamente um novo modelo de análise do risco Covid, com novas linhas vermelhas, que incorporem as dimensões mais importantes: gravidade e mortalidade. Ao continuar tudo na mesma, atribuímos ao vírus um risco que ele parece já não ter. Com isso condicionamos exageradamente a nossa vida coletiva, a economia, o emprego, o ensino, a cultura e o lazer.
Soltemo-nos um pouco mais em 2022! Bom Ano!
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS-CoV -2 (96ª semana: 26 de dezembro/21 a 1 de jan/22)
Na passada semana, fruto do aumento brutal de novos casos, assistimos a um aumento significativo do índice sintético de risco. Ainda assim, e atendendo aos critérios utilizados e à ponderação atribuída, o índice manteve-se dentro do nível de risco moderado, a que atribuímos o 3º nível de gravidade – o laranja. De salientar que, apesar do aumento brutal de casos (147%), registou-se uma diminuição nos doentes críticos (-1,9%), o que simboliza bem a menor gravidade da casuística covid.
.ÍNDICE: 1,692056 (risco moderado)
.TENDÊNCIA: subida
.COR DO SEMÁFORO: laranja
.DIMENSÃO PIOR: número de novos casos
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes internados
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.