- Num debate ocorrido no plenário da Assembleia da República na passada semana, o PSD através de um dos seus vice-presidentes de bancada, encheu de esperança os portugueses com promessas do que irá acontecer se o seu partido for governo: médico de família para todos, consultas para todos sem listas de espera, intervenções cirúrgicas ao momento para todos, exames complementares na hora, internamentos sem tempos de espera, camas de cuidados continuados e paliativos ao virar da esquina. Será assim outro Portugal que se desenha, em que os problemas de saúde ficarão resolvidos num ápice e os doentes deixam rapidamente de o ser.
Estas fantásticas promessas criaram uma enorme perplexidade em muitos espíritos, principalmente naqueles que conhecem bem o SNS, as suas forças mas também as suas fragilidades, e que travam uma batalha constante para limpar os escolhos que saem sempre ao caminho, os buracos que se encontram todos os dias ou a incompreensão e a rigidez dos interesses instalados, quer no setor público quer no setor privado. O PSD parece ter resposta pronta e eficaz contra tudo isto, qual varinha de condão que tudo ilumina, tudo pacifica e a todos dá satisfação.
Pois, mas a razão para estas promessas é mais fácil de entender do que se pensa. A solução do PSD, não passará tanto por corrigir o que está mal no SNS, realizar mais investimento em instalações, equipamentos e pessoas, alterar regimes de funcionamento dos serviços, apostar em mais qualidade e segurança do serviço público, rever carreiras e motivar os profissionais. Nada disso. O que vamos ter mesmo, segundo esta visão disruptiva da saúde, é a entrega dos doentes aos setores privado e social que com certeza terão disponibilidade para dar “médico assistente” a quem não tenha médico de família, consultas e exames para todos e cirurgias e camas para tratamento. Neste modelo o que menos importa é o estado do SNS, porque não é com ele que se conta para resolver as carências de saúde dos portugueses. O PSD cria uma alternativa assistencial, apesar do SNS e para além dele, que dará cobertura a todos os portugueses.
Bem, mas há nesta solução miraculosa vários problemas que a proposta não acautela. Será que os setores privado e social têm capacidade para alavancar esta solução? E o que é que acontece ao SNS? Desaparece ou vamo-lo desmantelando paulatinamente? E quem paga os custos da transferência em massa de doentes e de cidadãos sem médico de família, para o setor privado? E quem continuará a pagar as ineficiências que naturalmente se agudizarão no SNS? Esta duplicação de encargos, mesmo que temporária, tornar-se-ia a curto prazo incomportável para o Orçamento do Estado que já vive com dificuldades para sustentar o SNS.
Rapidamente se passaria a encarar um modelo de seguro social ou mesmo privado para que os portugueses fossem chamados a contribuir, sobretudo quando estão doentes, e a equidade do sistema tornar-se-ia uma quimera. O próprio setor privado não teria capacidade e capilaridade para se posicionar em todos os pontos do país com a mesma intensidade e diferenciação, abrindo brechas ainda maiores do que as que já existem em termos de acesso universal a cuidados de saúde. Mas o mais complexo seria compatibilizar um modelo de financiamento que protegesse o Estado, logo os cidadãos, de despesas em excesso, prestações em duplicado, cuidados redundantes para alguns e inexistentes para outros. Todos deviam saber que um modelo privado e competitivo de prestação trás, inexoravelmente, mais cuidados prestados, mas não propriamente mais úteis ou equitativos. As despesas disparam e os benefícios para a sociedade são muito discutíveis.
- Não deixa de ser curioso que em depoimento sobre a saúde, feito para o jornal “Público”, na sua edição de 23 de novembro, Rui Rio põe a enfase na necessidade de organização do SNS e na otimização dos recursos, no investimento público e no combate ao desperdício. Parece contrariar a tese de que tudo será facilmente resolvido, apontando aquilo que pensa serem problemas a resolver. Menos promessas e mais sentido da realidade. Refere-se também ao erro que foi acabar com as PPP nos hospitais, com o que eu concordo. O governo cedeu à geringonça onde não podia ceder, porque estes hospitais tinham modelos de gestão inovadores, estranhos à administração pública tradicional e com isso ganharam os doentes e o erário público. Ter acabado com essa solução em que tudo era escrutinado, da pertinência dos atos aos resultados para os cidadãos, foi uma decisão de puro taticismo político que ofendeu o bom senso e a inteligência dos portugueses.
- A ministra da saúde disse na Assembleia da República que precisava de recrutar médicos mais resilientes para o SNS. Levantou-se um clamor entre toda a comunidade médica contra esta afirmação. Não me parece de todo justificado.
A resiliência traduz-se na capacidade do indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas. Os médicos são uma das classes profissionais mais bem preparadas para lidar com situações de stress, como aliás ficou bem patente na atitude de muitos nesta crise pandémica. Mas todos sabemos que o SNS é apenas uma das componentes do trabalho médico, onde a maioria atua condicionada pela acumulação de funções que lhes permite compor o seu rendimento e o seu estatuto. É uma situação consuetudinariamente assumida pelos profissionais, pelos gestores e pelos governos, para a qual não há até agora alternativas. E sendo assim, não podemos ter horários médicos desfasados, equipas mobilizadas para, num tempo predefinido, limpar listas de espera, utilizar os blocos operatórios em, pelo menos, 2/3 do seu tempo útil ou realizar genuinamente cirurgia ambulatória ou fazer consultas até às 18 horas. A resiliência dos médicos não é, por isso, toda investida no SNS, pelo que este não consegue dispor de toda a sua dedicação e do seu trabalho, como desejaria.
A culpa não me parece ser dos médicos, que foram empurrados para modelos de colaboração com o SNS cada vez mais em urgência e com pouco tempo disponível para o trabalho programado. Quando se pretende mudar as regras do jogo, com novos horários e novos desafios, é natural que os obstáculos e a inércia próprias de uma prática clínica ancestralmente arreigada afete a capacidade de adaptação e provoque conflitos. O que se passa nalguns hospitais a propósito das urgências, com vários chefes de equipa a perderem a resiliência quanto às condições de trabalho e a assinarem cartas de demissão e de negação de responsabilidade, ilustra bem as dificuldades com que os serviços públicos hoje lutam para ter médicos disponíveis.
Por isso, as palavras da ministra da saúde, ao traduzir a ambição de mudar o paradigma do trabalho médico atual, pretenderam apenas lançar novos desafios e novos hábitos de trabalho. Mais resiliência, neste contexto, significa dispor de médicos com outra visão da profissão, mais disponíveis para um exercício de dedicação plena ao seu principal local de trabalho, que tenham tempo para discutir os casos clínicos, avaliar a qualidade e os resultados, comparar práticas entre diferentes serviços, fazer investigação, estar assiduamente com os seus doentes e ter tempo para lhes proporcionar a informação clínica relevante. Há muitos médicos que o fazem e que se dedicam intensamente aos seus doentes. Mas, infelizmente, nem sempre isso acontece. A ministra da saúde só não disse como pagar mais resiliência. E era importante que o tivesse feito.
Os médicos terão razões de queixa ponderosas quanto às suas condições de trabalho no SNS, mas é com serenidade, diálogo e a sua participação construtiva que o futuro poderá melhorar. Apelaria, assim, a mais resiliência por parte da ordem dos médicos, na interpretação das palavras da ministra da saúde.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA INFEÇÃO POR SARS – CoV – 2 (91ª semana, 21 a 27, novembro)
Na passada semana assistimos a um aumento significativo de todos os indicadores utilizados na construção deste índice (óbitos, internamentos em UCI e em enfermaria, novos casos e taxa de positividade dos testes). Os crescimentos mais significativos registaram-se no número de novos casos (+45% face à semana anterior), no número de óbitos (+40%) e no número de doentes internados (+32%). Estamos claramente na 5ª vaga, ainda que sem a pressão sobre os serviços hospitalares que vivenciamos nas vagas anteriores. Há um ano atrás tínhamos mais de 6 mil novos casos/dia (agora menos de 3 mil), 80 mortos por dia (agora menos de 14), mais de 3 mil internados (agora 670) e 500 doentes em cuidados intensivos (agora menos de 100). As diferenças são, como se vê, abissais, ainda que o aumento de novos casos tenha quase triplicado desde o dia 1 de novembro e o de novos óbitos, embora com valores baixos, tenha duplicado. Devemos encarar as próximas semanas com preocupação redobrada, porque a chegada de uma nova estirpe, o que se passa na maioria dos países europeus, o tempo frio e a quadra natalícia, podem conduzir-nos, lá para janeiro, a uma situação explosiva, muito semelhante à vivida no ano passado. As medidas do governo são, assim, adequadas às circunstâncias, pois o cenário de momento não é de alarme, nem de risco elevado.
. ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO: 0,786882 (baixo risco)
. TENDÊNCIA: subida acentuada
. COR DO SEMÁFORO: verde
. DIMENSÃO PIOR: positividade dos testes
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes internados
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.