Nas últimas semanas têm sido frequentes as referências ao “caos nos hospitais”. São títulos de jornais, vozes de responsáveis sindicais ou da Ordem dos Médicos, putativas ou reais demissões de diretores clínicos ou de serviço ou até, pasme-se, a demissão escrita de responsabilidades pelos resultados clínicos. As razões são sempre as mesmas: falta de recursos e de condições de trabalho, com riscos de vida para os doentes.
Não deve ser por acaso que esta contestação atingiu o seu clímax (agora, com este governo praticamente em gestão, provavelmente baixará de tom) no pico da discussão do Orçamento de Estado, tendo na mira obter ganhos conjunturais para os grupos de interesse envolvidos. É sempre assim e ninguém leva a mal. O que é particularmente estranho é que este alarido surja quando os hospitais estão a tentar recuperar o tempo e o trabalho perdidos, após um ano e meio subjugados pela pandemia.
Os hospitais consomem já perto de 68% do orçamento corrente do SNS para cuidados de saúde, numa voragem insaciável que deixa para trás a saúde mental, a saúde pública, a saúde preventiva, os cuidados de evolução prolongada, os cuidados primários e domiciliários. Cria-se, com isso, um círculo vicioso, em que o setor hospitalar vai respondendo a tudo e a todos e as outras áreas apresentam deficits evidentes de resposta. É por isso que a procura hospitalar está sempre a aumentar, as urgências voltam a encher-se e as listas de espera também. Os hospitais são assim e a contragosto, a âncora do SNS e de todo o sistema de saúde, onde tudo começa e, infelizmente, muitas vezes, também onde tudo acaba. A ideia, tão recomendável, de termos médicos de família que cuidem em primeira instância de todos e cada um de nós, aconselhando, controlando e tratando as afeções de menor complexidade, retiraria dos hospitais muitos doentes, quer nas consultas externas e nos internamentos (com diagnóstico e tratamento precoce a ser realizado na medicina familiar), quer, sobretudo, nas urgências.
Como bem sabemos não é isso que se passa, com cerca de 7 milhões de urgências por ano e milhares de consultas hospitalares evitáveis ou inúteis. Esta pletora da procura desvirtua a função diferenciadora da medicina hospitalar, frustra e desgasta o trabalho dos profissionais e mobiliza cada vez mais recursos. Os nossos hospitais, com um parque instalado de mais de 21 mil camas, gastarão este ano mais de 8 mil milhões de euros, num esforço público enorme que poderia ser muito melhor aproveitado.
A magnitude desta despesa não se compadece com uma gestão amadora e burocrática dos nossos serviços clínicos e dos nossos hospitais. Estes, na esfera pública, foram sempre encarados pelo poder político como organizações que gastam o que têm que gastar porque a doença não escolhe momentos nem se compadece com custos. Por isso, não se lhes aplica uma gestão profissional e exigente. Foram sempre entregues aos profissionais as principais competências de gestão, na composição das equipas, na definição dos horários, na supervisão do seu cumprimento, nos recursos técnicos e tecnológicos dispendidos, no uso dos principais equipamentos e instalações técnicas especiais, no acompanhamento e na avaliação de resultados (praticamente inexistentes). Importa, para sermos justos, referir que esta mentalidade se foi moldando lentamente face aos desafios económicos, sociais e de qualidade que a saúde das populações hoje coloca, impondo outro escrutínio, outra responsabilidade e outro profissionalismo na decisão e na ação. Também os hospitais beneficiaram desta evolução, mas sempre a muito custo e com significativo atraso face a outros domínios de atividade. Felizmente, hoje é já visível a intervenção da gestão, na definição de metas e de objetivos clínicos, na definição de métricas de acompanhamento e de avaliação, nas análises custo- benefício das intervenções clínicas, numa lógica de compromisso entre quem administra, quem presta os cuidados e, sobretudo, quem deles beneficia, o doente.
É, por isso, inaceitável clamar por mais recursos sem uma análise séria do que se passa e do que já se conseguiu fazer. Basear reclamações em casos, muitas vezes relatados de forma capciosa, não é uma forma honesta e construtiva de encarar a atividade dos nossos hospitais. E muito menos honesto será, quando quem reclama se põe sempre de fora das soluções como se não tivesse nada a ver com os problemas. E a referência ao caos pode amedrontar os doentes e desviá-los para outros prestadores.
Neste ano de 2021 os hospitais do SNS iniciaram um processo de retoma de atividade face ao apagão generalizado que ocorreu entre março e junho de 2020 por causa da COVID. Nesses meses, as cirurgias baixaram 60%, as consultas também, os internamentos desceram em 40% e as urgências também. Os hospitais estiveram fortemente concentrados na COVID e sofreram ainda as consequências do encerramento dos cuidados primários, que deixaram de reportar doentes. Aquilo que pareceria ser um esforço suplementar e brutal dos hospitais com a COVID, revelou-se, pelo contrário, ser um período de profunda acalmia na sua atividade. Esta situação só em 2021 e depois da 3ª vaga, começou a ser invertida. Não com a determinação e os resultados que se esperavam, mas com uma clara tendência de melhoria. Senão vejamos:
- As consultas externas hospitalares acumuladas até setembro, aumentaram em 13,6% face ao período homólogo do ano anterior, e as realizadas em tempo adequado, mostram-nos um aumento de 57%;
- As intervenções cirúrgicas realizadas no mesmo período aumentaram 31%, situando-se num valor que ultrapassa as 450 mil intervenções, o mais elevado desde 2013;
- Os internamentos subiram 7,3%, aquém, todavia, dos valores de 2019;
- Os doentes registados nas listas de inscritos para cirurgia, dentro dos tempos máximos de resposta garantidos, subiram 5,3%, mas estão ainda cerca de 20% abaixo dos valores de 2019;
- As urgências ultrapassaram já os valores de 2020 e aproximam-se rapidamente dos fluxos diários de 2019. Para o mesmo dia do ano – 28 de outubro – em 2019, tivemos 20,6 mil urgências, em 2020, 12,4 e em 2021, 18 mil. Isto não é bom, porque reflete a crónica incapacidade dos cuidados primários darem resposta à grande maioria das situações que acabam, assim, por cair nos hospitais.
Olhando agora para a execução orçamental de janeiro a setembro deste ano, em que os gastos hospitalares representam perto de 68%, a despesa total do SNS subiu 9,0%, face a período homólogo do ano anterior, sendo a rubrica de pessoal a que tem maior impacto (3,7 pp desse crescimento), com um valor de mais 295 milhões de euros, ou seja de 8,9%. Olhando exclusivamente para o crescimento da despesa hospitalar com medicamentos a taxa de crescimento foi de 11,5% (124 milhões de euros), a rubrica que mais cresceu em termos relativos. Ou seja em pessoas e medicamentos, duas áreas muito sensíveis na atividade médica, o SNS apresenta este ano aumentos assinaláveis e, repare-se, quando se compara com um ano atípico, como foi 2020, com forte acréscimo extraordinário de despesas por causa da Covid.
É neste cenário, em que os hospitais recuperam atividade, dispõem de mais recursos e trabalham mais, que o fantasma do caos aparece. Convém não esconder que o modelo de gestão dos nossos hospitais e, sobretudo o seu modelo de funcionamento estão esgotados, porque não cultivam a produtividade, temos recursos a meio tempo e instalações vazias uma parte substancial dos dias úteis (equipamentos de diagnóstico, salas de operações, gabinetes de consulta,etc.).Por isso, os hospitais públicos perdem na comparação com os hospitais privados, muito mais ágeis na resposta, com resiliência bastante para se adaptarem ao aumento da procura e, simultaneamente, estando mais atentos ao serviço em prol do conforto do cliente.
Mas daí até à figura do caos, vai a distância que corresponde aos milhares de doentes que passam todos os dias pelos nossos hospitais e são devida e corretamente tratados. Os problemas dos nossos hospitais residem essencialmente no excesso da procura indevida (nas urgências) e no modelo de trabalho que subutiliza recursos uma grande parte do dia e concentra um valor brutal de horas nas urgências. Não precisamos de mais recursos, temos é que gerir melhor os que temos e tratar bem quem se dedica às instituições.
Falar mal e de forma generalizada dos nossos hospitais pode ser útil para diferentes objetivos particulares e/ou de natureza política. Mas não serve seguramente o interesse público.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS CoV – 2 (semana de 25 a 31 de outubro 2021)(*)
Depois de um interregno de uma semana, o Índice de risco retoma a tendência de subida que se registava nas últimas semanas. O número de doentes internados subiu cerca de 9% no internamento geral e 7% nos cuidados intensivos. O número de novos casos subiu cerca de 4% e a positividade dos testes passou de 1,3% para 2%. Em contrapartida, continua a registar-se uma diminuição no número de óbitos, esta semana superior a 25% (3,8 óbitos em média diária que comparam com 5,14 na passada semana).
. ÍNDICE: 0,310861 (baixo risco)
. TENDÊNCIA: subida
. COR DO SEMÁFORO: verde
. DIMENSÃO PIOR: positividade dos testes
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes internados
(*) estimativa realizada no sábado, 30 de outubro
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.