Na passada 5ª feira, o governo aprovou em conselho de ministros uma proposta para o novo Estatuto do SNS, que será agora apreciada por diferentes entidades (ordens profissionais, sindicatos, conselho nacional de saúde,etc.) e ainda objeto de consulta pública.
O documento dá sequência a algumas das ideias mais emblemáticas da proposta de Orçamento do Estado para 2022, clarificando um pouco o que se pretende inovar:
- A dedicação plena
É uma das maiores apostas do governo no sentido de promover o compromisso dos profissionais com o SNS, aumentando a sua disponibilidade para tratar mais doentes e acabar com as listas de espera. Há alguns pontos que são agora clarificados e que, desde logo, e a meu ver bem, afastam o conceito de exclusividade.
A dedicação plena é de candidatura voluntária por parte de cada trabalhador do SNS, não ficando claro se as administrações das instituições são obrigadas a dá-la a todos os que a solicitarem. Seria importante a reserva dessa prerrogativa discricionária para quem administra, pois só assim se promoveria a plena dedicação dos melhores e nas áreas em que esse estatuto novo seja, de facto, relevante para melhorar resultados para os doentes. O facto de o processo ser progressivo e começar pelos médicos, pode dar-nos a esperança de que assim poderá ser.
O conceito de “dedicação plena” não está convenientemente explicitado, mas percebe-se que implicará mais horas semanais de trabalho e remuneração acrescida. Falta esclarecer o modelo remuneratório (variável, com salário e incentivos?) e o seu alinhamento com metas assistenciais, tempos de espera e eficiência técnica (que inclui volume, custos e qualidade de trabalho). Como a matéria será para negociar com os sindicatos, imagina-se que o governo tenha já propostas a apresentar.
Percebe-se, do que já se conhece, que os médicos que venham, de futuro, a ser designados para cargos de direção de departamentos e serviços, terão que estar obrigatoriamente em dedicação plena, com limite de horas de exercício noutras instituições, públicas ou privadas.Com esta formulação fica claro que não têm que estar em exclusividade, mas também poderemos concluir que os médicos que não estejam em funções de direção poderão ter horas ilimitadas no privado. Nada de particularmente bom se espera neste cenário. Por outro lado, estabelece-se que a dedicação plena é incompatível com o exercício de funções de direção técnica, coordenação e chefia em instituições privadas de saúde. Não será hoje muito verosímil que isso possa ocorrer, pois o setor privado tem desenvolvido, também ele, estratégias de dedicação plena para as suas direções médicas, mas traça-se aqui uma linha vermelha que importará saber controlar.
Estas exigências e estas incompatibilidades criarão novos desafios à classe médica e aos serviços públicos, não sendo de prever que os profissionais mais prestigiados optem pela dedicação plena se não tiverem remunerações largamente superiores ao que hoje auferem. Vamos esperar pelas negociações que se seguirão com os sindicatos para percebermos o impacto financeiro e, até, a exequibilidade desta inovação.
- Direção executiva do SNS
Pretende ser uma medida que centralize, num novo órgão, as competências de coordenação e monitorização do desempenho do SNS. Parece querer replicar o modelo inglês de direção autónoma do NHS com um colégio constituído pelos melhores profissionais das diferentes áreas da saúde que, com competências próprias e independência, gere essa enorme holding. Pode ser uma excelente ideia, mas importa referir que essas tarefas já competem, por um lado, às ARS (para os cuidados primários), à ACSS (para os hospitais) aos Serviços Partilhados para os sistemas de informação e ao governo para quase tudo, ainda que com zonas de sobreposição que complicam o modelo. Esta nova ideia parte do pressuposto de que o SNS é um todo contínuo e integrado de serviços, em que os resultados não são avaliados parcelarmente, antes ao longo dos percursos dos doentes e dos cidadãos em geral. Mas isso, infelizmente, ainda não temos e é muito provável que estejamos a dar um passo maior que a perna. Vamos, também aqui, aguardar o que será este órgão, quem o integrará, se é mais uma estrutura burocrática que se atropela com as já existentes ou se será mesmo uma estrutura ágil, com poder de decisão e muito focada nos resultados clínicos e económicos.
- Autonomia de gestão das unidades e dos serviços
Prevê-se, como já é referido na proposta de orçamento para 2022, que as administrações das unidades de saúde possam contratar, sem recurso prévio ao ministério das finanças, os profissionais que irão substituir os aposentados ou os que temporariamente estejam impedidos do exercício profissional. Parece ser uma excelente medida que dará mais competências à gestão dos serviços e mais fluidez aos processos de contratação. Aguardemos o seu impacto nos orçamentos das instituições e se há real capacidade de antecipar, com planeamento adequado, as situações em que essa autonomia será exercida.
- Mais trabalho suplementar, mais horas extraordinárias
O governo encara o trabalho suplementar como a tábua de salvação para a carência de recursos médicos e como combate às empresas de trabalho médico temporário. Um médico neste regime de free lancer pode auferir mais de 100€ por hora de trabalho, contra 12 ou 15€ de um médico do quadro do SNS. Muitos médicos pertencentes ao SNS trabalham em paralelo noutros hospitais ou serviços, para aumentar os seus rendimentos, o que é legítimo, mas isso deteriora as relações de trabalho, obriga a horários absolutamente irracionais e põe em causa a segurança dos doentes. As boas soluções não se compadecem com o aumento do número de horas extraordinárias ou com a majoração do seu valor. Isso só alimenta a irracionalidade dos horários e a concentração do trabalho nos serviços de urgência. E o que precisamos é exatamente o inverso: reduzir a procura de urgência, reduzir as dotações médicas dessas equipas, reduzir os horários das escalas médicas e reorientar os jovens médicos para o trabalho nos quadros do SNS, com carreiras estáveis e bem remuneradas. Só com a concordância da OM, dos sindicatos médicos e dos principais partidos políticos, será possível definir um quadro de medidas de combate que dissuadam este paraquedismo médico, mesmo que isso se tenha de fazer com fortes penalizações para comportamentos ou opções contra o interesse público. Só a médio prazo conseguiremos resultados nesta matéria, mas seria importante que o processo fosse de imediato iniciado.
- Um representante dos trabalhadores nos conselhos de administração
Esta é a medida mais surpreendente do novo estatuto proposto para o SNS. É um regresso, ainda que tímido, aos modelos de cogestão que bem conhecemos e que nada de bom trouxeram aos nossos hospitais. Parece ter surgido inopinadamente, como moeda de troca junto dos partidos à esquerda do PS, para conseguir viabilizar o OE para o próximo ano. É uma proposta que contradiz a ideia de profissionalização e de autonomia que se pretenderia imprimir à gestão das instituições de saúde. A gestão faz-se com independência face aos interesses de grupo, com competência, face à politização trazida pelas comissões de trabalhadores, com o foco nos interesses dos doentes e não nos interesses das corporações.
Por outro lado, incluir no próprio órgão máximo de gestão um representante eleito pelo plenário dos trabalhadores de cada instituição, mesmo que com funções não executivas, é um fator de perturbação permanente que impedirá as melhores decisões, sobretudo quando o interesse público se confrontar com os interesses particulares. A inação, o facilitismo e o despesismo serão o corolário lógico desta medida. Não será caso para a abandonar liminarmente? A representatividade dos trabalhadores deve existir, mas nunca como decisores. Ela está já prevista na Lei de Gestão Hospitalar em vigor (Dec-Lei 16/2017 de 10 de fevereiro) através da inclusão de um representante dos trabalhadores no Conselho Consultivo, órgão que aprecia as grandes decisões da Instituição e procede a recomendações. Reformular a constituição desse órgão, passando a incluir representantes de todas as profissões de saúde existentes nos hospitais (e são dezenas, com estatuto social, académico e remuneratório bem diferente, logo com interesses profissionais não coincidentes) seria muito mais razoável e menos perturbador para os fins a que se destina: todos teriam voz e poderiam influenciar ou corrigir o rumo estratégico e algumas medidas mais gravosas. Aliás, esta solução foi já adotada em estatutos de gestão hospitalar do passado recente.
O novo Estatuto do SNS, para além da discussão pública prévia à sua aprovação, necessita de mais 180 dias para que ocorram as alterações legislativas e regulamentares que permitam a sua operacionalização. O seu efetivo impacto ocorrerá lá para 2023. E até lá?
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DO SARS-CoV -2 (semana de 18 a 24 de outubro) *
Contrariando as duas últimas semanas, regista-se uma descida no índice de risco. Para tal facto, contribuiu, principalmente, a descida no número médio de óbitos diários registados e, secundariamente, as descidas verificadas na existência média diária de doentes internados e na positividade dos testes. De assinalar, ao invés, a subida no número de novos casos, pela terceira semana consecutiva, com um crescimento acumulado já superior a 32%.
Indice: 0,31006 (baixo risco)
.Tendência: descida
.Cor do semáforo: verde
.Dimensão pior: positividade dos testes
.Dimensão melhor: número de doentes internados
(*) Estimativa realizada com base nos dados registados até sábado, 23 de outubro
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