Para um cidadão comum, não iniciado em bizantinices processuais, o caso de João Rendeiro é, a todos os títulos, incompreensível. É, desde logo, inexplicável que, tendo o BPP falido em 2008, o julgamento de um banqueiro que deixou um rasto de milhares de lesados só se tenha iniciado em 2014. É igualmente difícil perceber que tenham sido necessários mais sete anos de recursos e incidentes processuais para que a primeira sentença tenha finalmente transitado em julgado, 13 anos depois da falência do banco. Quase tão bizarro é o facto de o advogado de Rendeiro, nesta fase final do processo, ter sido, há cerca de dez anos, advogado dos lesados do BPP que então responsabilizavam Rendeiro pela difícil situação em que caíram. Cereja em cima do bolo, passados 13 anos, ao tal cidadão comum pede-se agora que entenda, interiorize e aceite que Rendeiro abandonou tranquilamente o País e se encontra a viver dos seus desmandos nalgum paraíso tropical.
Não sei, evidentemente, discutir o caso no plano jurídico e processual. Estou consciente de que, num Estado de direito, os arguidos, os acusados devem beneficiar de um conjunto alargado de direitos e garantias que impeçam julgamentos sumários, perseguições e condenações injustas. E posso, portanto, admitir até que todo este rocambolesco processo se tenha desenrolado num escrupuloso respeito pela lei. É o que me dizem os mais letrados do que eu. Mas, ignorante que sou, sei, apesar de tudo, pôr-me nos sapatos do tal cidadão comum (que sou, afinal de contas, eu próprio) e afirmar algo muito simples: a lei e os processos penais não podem divorciar-se em absoluto do senso comum.
Assim como não pode ser mero justicialismo nem mero espetáculo (que, por vezes, também é), a Justiça não pode ser apenas uma extraordinária construção teórica, capaz de deliciar intelectualmente os iniciados nos segredos da cabala, mas divorciada de uma capacidade de fazer o justo, que seja apreensível pela generalidade dos cidadãos.
No caso em apreço, não manda o bom senso que se tivesse reclamado um julgamento sumário do cidadão Rendeiro. Nem tão-pouco teria sido sensato ponderar uma prisão preventiva durante os longos anos em que decorreu o processo. Mas não será razoável afirmar que a entrega de um passaporte é um incómodo que se pode razoavelmente exigir a alguém que foi condenado em primeira instância por burla qualificada e que tem todos os meios para se furtar a um cumprimento de pena?
É, tão-só, este exercício de equilíbrio, este esforço para descer das torres de marfim em que tantas vezes se encontra perdida, esta tentativa de se manter minimamente ligada ao senso comum, que se pede hoje à Justiça portuguesa. E eu, que sou leigo, não sei se, para o fazer, é preciso mudar a lei ou se é preciso mudar a cultura judicial. Só sei que não perceber que a Justiça não pode continuar a viver num universo de abstrações teóricas é não perceber nada.
(Opinião publicada na VISÃO 1492 de 7 de outubro)
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