Amigos que se mantêm próximos não têm memória. Eu nunca vou esquecer. O bullying começou na mesma altura em que me apercebi que era diferente, tinha eu uns 8 anos. Diferente, aos 8, era tudo o que sabia, sem palavras para associar à diferença. Viria a perceber que parte da minha família e comunidade me viam como algo de mau, a precisar de arranjo ou sem merecer viver, como cheguei a ouvir. Antes de sequer ousar expor o que pulsava cá dentro, tudo mudou. O meu melhor amigo esqueceu-se do meu nome. Paneleiro era a constante.
Não sabia o que isso era, mas já mo apontavam, pejorativamente. Aquela palavra tinha muito poder para todos, menos para mim: fazia com que me batessem nos intervalos, com que não pudesse usar o computador nas aulas de informática e que cascas de fruta voassem para a minha sopa. Lembro-me dum episódio em particular, estávamos no intervalo, enquanto um colega me agarrava, outro apertava o pescoço e outro dava pontapés. Gritei o mais alto que pude, olhando para alguém responsável, que me devolvia o olhar sem nada fazer. “Éramos só crianças a brincar”.
“Também ao psicólogo senti que precisava mentir. A mentira deu-me um conceito ridículo de proteção: calar para apanhar menos”
Quem me podia proteger não o ia fazer, estava por minha conta e passei a ter medo do meu lugar favorito, a escola. A vergonha e o medo manifestavam-se, além das lágrimas, numa dor de cabeça, acompanhada de formigueiro. Não tinha apetite e implorava para ficar em casa. A minha mãe esforçou-se por entender. Como é que alguém que sempre quis estar na fila da frente de repente não quer sair de casa? Também ao psicólogo senti que precisava mentir. A mentira deu-me um conceito ridículo de proteção: calar para apanhar menos.
Éramos, sim, crianças. Mas há algo que todos precisamos compreender: as crianças são uma tábua rasa. Se o que lá for escrito for mau, elas irão agir de acordo com isso. Se lhes ensinam violência elas vão perpetuá-la. Se lhes ensinam a odiar é ódio que vão sentir. Até questionarem, mas muitas vezes isso acontece bem mais tarde.
No 5º ano, como íamos para escolas diferentes, achei que tudo mudaria. Os primeiros meses foram fantásticos, conhecimentos e amigos novos, vida nova. Mas claro que “isto” me iria sempre apanhar, fosse como fosse. Uma professora para me mandar calar, a mim e a um amigo, disse para pararmos de estar aos beijos. Nunca entendi. Só beijei um rapaz pela primeira vez aos 18. Num meio pequeno, não importou que não tivesse acontecido. Comentou-se fora da sala e tudo mudou, de novo, durante anos.
Estava marcado por uma suposta demonstração de afeto. Achei que a história se iria embora, mas não. Os dias de medo regressaram, mas agora ia lidar com mais, de todas as idades, numa escola grande, onde achavam por bem bater e insultar por algo que ainda nem eu compreendia. As dores de cabeça e o formigueiro voltaram.
Tomei as medidas possíveis: sentar-me no início do autocarro – os machões curiosamente preferem a parte de trás; deixei de entrar na escola pela entrada principal e ia sempre por detrás dos pavilhões. Havia menos gente, parecia mais seguro. Parei de comer na cantina, era palco para situações menos boas. Isso não foi suficiente. Durante anos que não foi.
“Cheguei ao ponto de rezar para que se fosse embora, mesmo já não acreditando num deus que cria alguém de uma forma e depois castiga. Não foi embora, não podia, nem tinha”
Na escola faziam sempre festas no final do período e ocasiões especiais. Numa dessas, atiraram-me papéis durante todo o evento. Deixei de ir às festas. Num dos cortejos de carnaval atiraram-me pedras. Deixei de estar presente. Os intervalos eram oportunos para essas coisas, então comecei a ficar dentro dos pavilhões. Comecei também a riscar os dias num calendário que guardava na carteira. Era o meu porto secreto. Contava as faltas que podia dar, os dias piores, os feriados, os fins de semana. Sozinho.
Achei que não podia ser amado se fosse assim. Até aos 12, todas as manhãs, acordava na expectativa de ter mudado, mas bastava-me chegar à escola para olhar para um rapaz e saber que era um olhar diferente. Cheguei ao ponto de rezar para que se fosse embora, mesmo já não acreditando num deus que cria alguém de uma forma e depois castiga. Não foi embora, não podia, nem tinha.
Há um outro episódio antes do secundário que me marcou. Abriu um bar na terra e fui sair à noite pela primeira com amigos. Um dos “populares” agarrou-me, apalpou-me e falou-me como se fosse lixo. Embora saiba que está tudo bem, sair à noite e pensar em sair deixa-me ansioso.
Aos 18 anos, a fazer terapia disse pela primeira vez que era gay. A sessão demorou 3 horas porque só após chorar durante este tempo, depois de me terem sido servidas duas bebidas alcoólicas – nem o terapeuta sabia o que fazer – é que consegui, por uma pergunta direta, acenar com a cabeça. Demorei tanto porque achava que me iria querer suicidar se isso fosse verbalizado, que não aguentaria a vergonha se alguém soubesse. Em vez disso fui recebido com um sorriso e um abraço.
É problema é muito profundo. As vítimas nem sempre denunciam, e por vezes suicidam-se. Na ausência de uma denúncia por parte da vítima, poderiam ser os colegas. Mas esses por vezes “não vêem”, também têm medo. É difícil ir contra o estabelecido, contra os que dentro de uma estrutura social como a escola têm mais poder. Resta-nos os professores, mas, sem desprimor, até aí há uma incógnita, não reação e ação.
“Quando via pessoas na minha situação e não conseguia fazer nada, sentia-me impotente. Por vezes até tentava gozar, em retrospetiva acho que era homofóbico”
Quando via pessoas na minha situação e não conseguia fazer nada, sentia-me impotente. Por vezes até tentava gozar, em retrospetiva acho que era homofóbico. Falei, há uns anos com um colega que passou algo semelhante na escola e lamentei não ter sido capaz de intervir. Ele disse que não importava e até me confessou que fui das primeiras “crushes” dele. Saber isso foi emocionante para mim. Numa altura em que eu tinha repulsa de mim, havia alguém quem reparasse. Há sempre alguém.
Somos muito do nosso passado. Ser gay não faz de mim menos homem nem é tudo o que sou. Até as emoções menos boas levaram-me a olhar as coisas com outros olhos e a aguçar o sentido de humor. A honestidade só trouxe vantagens. Não só permitiu manter amizades, como possibilitou que as mesmas se fortalecessem e multiplicassem. Permitiu-me amar e ser amado, construir algo com alguém. E, acima de tudo, ser livre.
A vida é cada vez mais plena porque tenho deixado que permaneça em mim um “e se?”, porque me deixei guiar pela imaginação, por curiosidade relativamente a outras vidas. Felizmente, nas minhas caminhadas diárias, nunca deixei que o mar, muitos metros abaixo dos meus pés, me seduzisse por completo.
Espero que quem chegue até este parágrafo, independentemente da vida, cor, peso, género ou orientação sexual, se pergunte, com vista ao futuro “e se?” e veja todas as combinações possíveis.
*Leonardo Rodrigues. Nascido na Madeira, veio para Lisboa estudar comunicação. Com um coração que já é mais lisboeta, conta histórias em diversas publicações. Diz que escreve sobre isto e aquilo e fotografa aqui e acolá. Ativista ambiental e pelos direitos humanos. @leonismos no Twitter