Muito se tem escrito e dito sobre a inadequação da atual matriz de risco do SARS-CoV – 2, face aos impactos atuais da pandemia. A presença de dois indicadores apenas e de natureza sobreposta, pois ambos se referem à dimensão volume ou incidência de novos casos, fez com que muitos especialistas começassem a pôr em questão a sua adequação à realidade atual. De facto, não temos nenhum indicador que permita uma análise da gravidade dos casos, direta ou indireta, e que, consequentemente, nos alerte para linhas vermelhas quanto à pressão sobre os serviços de saúde.
Têm surgido, portanto, propostas de alteração da matriz de risco, como a que foi concretizada a passada semana pela Ordem dos Médicos, no sentido de incluir estas novas dimensões de risco (gravidade e esforço do SNS), sobretudo porque se percebeu que, se ficarmos reféns de indicadores exclusivamente de incidência, podemos ser tentados a travar o vírus com medidas mais severas de confinamento, quando ele deixa de impactar de forma particularmente relevante na vida das pessoas e dos serviços de saúde. Dito de outra forma, uma subida, ainda que significativa de novos casos, pode não provocar um aumento proporcional de internamentos, de casos críticos e de óbitos, como ocorreu nas vagas anteriores. Em todos os países tem sido assim, sobretudo pelo efeito de um processo de vacinação eficaz e bem-sucedido.
Seguindo este raciocínio, proponho-me, também, refletir sobre as alternativas possíveis para a atual matriz de risco. Dadas as diferentes dimensões ou pontos de vista relativamente aos impactos da pandemia, podemos considerar estar em presença de uma questão que exige a utilização de uma análise decisional multicritério (MAUT – Multiattribute Utility Theory), em que devemos reunir o maior número possível de pontos de vista ou perspetivas (de saúde pública, de funcionamento de serviços, de equidade, de atividade económica, de normalidade etc.), selecionar consensualmente as mais importantes (que não devem ser muitas) e a partir daí distribuir valor relativo a cada dimensão e promover uma escala de análise por critério e um valor global ponderado multicritério.
Há neste apuramento dos critérios mais relevantes, três princípios básicos que devem ser respeitados: a) a capacidade de serem transformados em indicadores de medida, de forma simples e objetiva; b) a ausência de redundâncias, isto é, evitar que os critérios possam sobrepor-se entre si, nas finalidades e no que cremos assinalar; c) a coerência, evitando trade-offs que tornem inoperacional a sua utilização conjunta, ou evitando misturar dados da realidade com dados previsionais. Refira-se, a propósito, que a atual matriz de risco contempla dois indicadores da mesma dimensão – incidência – porque um indica o volume periódico de casos e o outro projeta o número previsível de futuros contágios, ou seja o “volume” que se prevê. Esta concentração num objetivo único para a decisão, que será evitar que o número de contágios aumente ou que ultrapasse uma determinada fasquia, é de facto redutora, deixando de fora o diagnóstico da gravidade, os casos desconhecidos potencialmente reais, a letalidade do vírus e a sua evolução, as estirpes, a pressão sobre os hospitais, etc.
Para uma nova matriz de risco selecionei apenas cinco critérios, exclusivamente relacionados com o impacto do vírus na área da saúde e estabeleci, para cada, um valor de ponderação relativo, atendendo ao princípio de dar primazia aos riscos mais graves para a vida humana:
- Letalidade
- Indicador: Número de óbitos (valor médio diário por semana);
- Índice: quociente entre o número de óbitos médios/dia/semana e o número de óbitos máximo de segurança (estimado em 15 por dia, tendo em atenção 5% dos valores máximos atingidos – 300 – na 3ª vaga);
- Ponderação: 0,30
- Doentes críticos
- Indicador: número médio diário de doentes internados em cada semana em unidade de cuidados intensivos em hospitais do SNS;
- Índice: quociente entre a “existência média diária” em UCI e o valor máximo de segurança atribuído (180 doentes, assumindo a fasquia de 20% dos valores máximos atingidos na 3ª vaga -900);
- Ponderação: 0,25
- Doentes internados
- Indicador: número médio diário de doentes internados em cada semana em hospitais do SNS;
- Índice: quociente entre a “existência média diária” em cama hospitalar e o valor máximo de segurança atribuído (1.400 doentes, assumindo a fasquia de 20% dos valores máximos atingidos na 3ª vaga – 7000);
- Ponderação: 0,20
- Incidência
- Indicador: número de novos casos ocorridos por dia em média diária semanal;
- Índice: quociente entre os novos casos ocorridos (valor médio semanal) e o valor máximo de segurança atribuído (3.200 doentes/dia, assumindo a fasquia de 20% dos valores máximos atingidos na 3ª vaga – 16.000);
- Ponderação: 0,15
- Positividade dos testes
- Indicador: valor percentual de testes positivos em média diária semanal;
- Índice: quociente entre o valor percentual de testes positivos (em média semanal) e o valor de 3% indicado, como valor de segurança, pelo ECDC.
- Ponderação: 0,10.
Na abordagem global destes critérios o índice 1 significará que na análise multicritério se atingiu o valor máximo de segurança, a partir do qual se impõem medidas corretivas imediatas. Isso não invalida que a análise critério a critério nos mostre diferentes posicionamentos face à fasquia individual atribuída, o que permite em cada momento, e se for o caso, tomar medidas dirigidas a este ou àquele objetivo. Um exemplo: se o indicador de incidência tiver ultrapassado o valor de segurança, e os restantes indicadores, designadamente relacionados com a gravidade, estiverem ainda longe dessas fasquias, deveremos tomar medidas seletivas para travar a incidência mas não reforçar os meios de tratamento.
Mas vamos aplicar este modelo á realidade atual, tomando a semana transcorrida ente 12 e 18 de julho do corrente mês, à data em que escrevo (6ª feira):
- Óbitos
- Média diária: 7,60
- Limite recomendado: 15
- Índice: 0,50
- Índice ponderado: 0,150
- Doentes em UCI
- Existência média diária: 168
- Limite recomendado: 180
- Índice: 0,93
- Índice ponderado: 0,230
- Doentes internados
- Existência média diária: 751,4
- Limite recomendado: 1.400
- Índice: 0,53
- Índice ponderado: 0,106
- Número de novos casos
- Número médio diário: 3.154,6
- Limite recomendado: 3.200
- Índice: 0,98
- Índice ponderado: 0,147
- Positividade dos testes
- % média semanal: 4,9%
- Limite recomendado: 3% (ECDC)
- Índice: 1,63
- Índice ponderado: 0,163
Olhando para estes resultados, percebemos que o índice global (que resulta do somatório dos cinco índices parcelares ponderados) é de 0,796, inferior aos limites globais de segurança. Verifica-se que a elevada positividade dos testes, associada ao número de novos casos e de doentes em cuidados intensivos, já mais perto do índice 1 (0,98 e 0,93, respetivamente), implicam a tomada de medidas ao nível da contenção da expansão do vírus, o que diga-se, o governo já vem fazendo a algumas semanas a esta parte, ainda que com resultados até agora pouco visíveis. A situação exige de facto uma atitude atenta e proactiva, mas sem necessidade de recorrer a mais meios no SNS, pois estamos ainda com alguma margem de reserva para uma procura, aparentemente, ainda em expansão.
Esta matriz geral tem a vantagem de ilustrar a realidade dos números que todos os dias chegam a nossas casas, sendo diretamente percetível por qualquer pessoa. A sua periodicidade é semanal, o que dá consistência à respetiva realidade e evita atrasos na tomada de medidas baseadas em evoluções quinzenais. Em contraste, a matriz atual, ao estabelecer a frequência do fenómeno “contágio” relacionado com os residentes (300 por 100 mil habitantes, em 14 dias,por exemplo) não é compatível com a leitura diária de novos casos, nem permite aos cidadãos uma perceção clara da realidade. A matriz que apresento obedece a uma escala – índice contínua, a partir de 0, podendo ser estabelecidos semáforos de gravidade relativa (verde, amarelo, laranja ou vermelho), de acordo com o que se quiser convencionar – até 1 (verde); de 1 a 1,5 (amarelo); de 1,5 a 2 (laranja); a partir de 2 (vermelho), a título de exemplo.
Podemos também converter esta matriz para uma aplicação local ou regional baseada em números absolutos, forma de apresentação que, repito, torna mais direta a perceção da realidade, devendo ser, todavia, mantida a perspetiva da densidade para efeitos comparativos inter-regionais ou inter- concelhios. É, aliás, esta a forma mais frequente com que nos são dados os números de utilização hospitalar de doentes com COVID ou dos óbitos, o que permite atribuir coerência e clareza a todo o modelo.
Com uma matriz deste tipo, atribuímos mais importância relativa a certos fenómenos do que a outros, numa escala de ponderações que vai crescendo no sentido da gravidade. Optamos por incluir o indicador relacionado com o peso dos testes positivos, porque admitimos aleatoriedade na sua realização, mesmo quando dirigidos a grupos de risco elevado. A deteção de novos casos por essa via, que poderiam nunca ser objeto de contabilização e de referência epidemiológica, são a razão desta opção, permitindo ter da realidade uma noção mais aproximada. Mas tenho dúvidas sobre a sua coerência.
Percebi, entretanto, que a matriz proposta pela OM coincide, nos princípios, com a que acabei de apresentar. Tem para mim o defeito de manter dois indicadores sobrepostos como critérios de análise – a incidência e o R(t) – o primeiro real e o segundo previsional, mas sobre o mesmo fenómeno. Não tive também, ainda, a oportunidade de ter informação exata sobre as bases de construção dessa matriz (que fasquias ou que ponderações foram estabelecidas, por ex.). Estamos perante modelos de avaliação da COVID que caminham no sentido de diversificar critérios e ponderar riscos, tudo no sentido de facilitar ao decisor político um quadro decisional mais e melhor informado. Esperemos que consigamos chegar a um modelo consensualizado entre os principais stakeholders (cientistas,especialistas,prestadores de cuidados, cidadãos e políticos) que retrate de forma simples e atualizada a realidade e que permita dar transparência, previsibilidade e estabilidade às decisões.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.