A pandemia pelo vírus SARS -CoV-2 mudou de caraterísticas nos últimos meses. A vacinação, já significativa, da população portuguesa, foi o fator que espoletou essas mudanças. Estas criaram entre os especialistas a necessidade de se refletir sobre a matriz de risco até agora utilizada, admitindo-se que, eventualmente, poderá já não ser adequada às novas circunstâncias.
Com a aceleração do processo de vacinação, Portugal tem já completamente vacinados 92% dos cidadãos com mais de 80 anos e, com a primeira dose, 94% dos que têm a sua idade compreendida entre os 65 e os 80 anos. Isto significa que os grupos que sempre estiveram em maior risco pandémico, ou estão completamente protegidos ou viram significativamente reduzidos os riscos de adquirirem a doença e/ou de a mesma se manifestar de forma grave ou crítica. Esta realidade provocou alterações sensíveis na forma como o vírus afeta hoje a sociedade portuguesa:
- No último mês assistimos a um aumento da incidência do vírus, registando-se hoje o dobro de casos diários face ao mês anterior. Esta evolução em “pezinhos de lã” significa que temos que recuar a 6 de março para encontrarmos um dia com tantos casos como os que ocorreram nalguns dias da passada semana (900 casos/dia);
- Todavia, essa evolução não tem tido correspondência no aumento de doentes internados, no aumento de doentes críticos e no aumento da mortalidade, indicadores que também subiam algumas semanas depois, antes da vacinação. O internamento geral por COVID aumentou apenas 3,7%, em média diária semanal, entre a 62ª semana (3 a 9 de maio) e a 67ª semana (7 a 10 de junho, último dia da análise), o internamento em cuidados intensivos diminuiu 17,0% no mesmo período e o número de óbitos apresenta, desde a semana iniciada em 10 de maio, valores médios diários entre 1 e 2 vítimas mortais.
- Os novos casos incidem hoje sobre as populações das faixas etárias mais novas, com os residentes com menos de 40 anos a representar já 55% dos novos casos diários, quando em março representavam apenas 44%. Neste contexto, importará salientar o peso crescente da população com menos de 20 anos, que já representa 20% dos novos casos diários, o dobro dos valores verificados nalguns dias de maio. Pelo contrário, o peso dos infetados com mais de 80 anos, que em março passado era de 7,28% é agora de apenas 2,5%.
- Quanto à mortalidade, é elucidativo referir que nos últimos 14 dias (26 de maio a 9 de junho) apenas se registaram 3 óbitos de pessoas com mais de 80 anos, o que correspondeu, apenas, a 1% dos infetados entretanto registados nesse grupo etário. Se tomarmos em atenção os valores acumulados desde o início da pandemia, verificamos que para esta faixa etária a mortalidade é de 16%, o que ilustra bem a proteção efetiva que a vacinação já conseguiu. O mesmo ocorreu na faixa etária entre os 70 e os 79 anos, em que a realidade dos últimos 14 dias é de 0,96% de óbitos face ao número de infetados e o valor acumulado é de 6,5%. Noutra perspetiva de análise, verifica-se que ao longo da pandemia os óbitos ocorriam, na esmagadora maioria, entre os residentes com mais de 70 anos (87% dos casos). Nos últimos 14 dias essa percentagem desceu para 40%, registando-se mais óbitos entre os 50 e os 69 anos (53% do total).
Há, portanto, uma alteração sensível nos níveis de gravidade dos infetados por SARS – CoV -2.
Sendo agora bastante mais novos, têm manifestações ou sintomas mais ligeiros da doença e fazem a sua recuperação em ambulatório sem problemas de maior. Isto retira pressão sobre os serviços hospitalares, embora mantenha alguma em termos de saúde pública e de cuidados de saúde primários (deteção, rastreio e vigilância).
Isto significa que o olhar concentrado no volume de casos e na incidência diária, que determinava, invariavelmente, um aumento de internamentos, do trabalho dos cuidados intensivos e o crescimento imparável da mortalidade, já não tem adesão à realidade COVID de hoje. Por isso, vários especialistas procuram indicadores novos, alternativos ou complementares à atual matriz de risco, que permitam dotar os decisores de ferramentas preditivas mais adequadas à nova realidade. Ou seja, perspetivar apenas a evolução do volume de infetados, utilizando dois indicadores com a mesma finalidade – a incidência por cem mil habitantes e o R(t) – não parece ser, no momento que vivemos, suficiente.
Importa, a propósito, equacionar o exemplo recente da Região de Lisboa e Vale do Tejo, que tem tido um aumento no número de casos e que vai já com uma incidência de 222 casos por cem mil habitantes (78,4 no Continente). É uma situação excecional no contexto nacional mas a que importa por cobro, acelerando, por exemplo, a vacinação, já que se trata da região que está mais atrasada nesse processo. Na comparação com os países da Europa a 15, Portugal tem tido nas últimas semanas um bom desempenho, ilustrado por ser o 5º país com menos casos por cem mil habitantes (apenas superado pela Finlândia, Alemanha, Áustria e Itália nos últimos 14 dias – ECDC) e o 2º país com menos óbitos por milhão de habitantes, apenas superado pela Irlanda que não registou nenhum óbito nesse período.
A gravidade dos infetados é hoje a dimensão mais importante de análise da pandemia e a criação de um indicador tipo índice que refletisse a pressão na utilização de camas hospitalares e de UCI poderia facilmente identificar os limites toleráveis. Por outro lado, o efeito de novas estirpes ou variantes, a par do fenómeno da “long Covid” (o NICE define este conceito como a permanência de sequelas ostensivas da doença até 12 semanas após a identificação do contágio), que coloca novos desafios no acompanhamento e reabilitação de ex – infetados, são questões importantes a que importa estar atento e dar resposta.
Estamos numa nova fase da Covid, em que os riscos são substancialmente menores para todos e, sobretudo, para os mais velhos. Concentremos esforços em avançar mais depressa com a vacinação, estudemos os efeitos das novas variantes na eficácia das vacinas existentes e equacionemos a eventual necessidade de um reforço vacinal mais tarde. E cuidemos dos que apresentam sequelas prolongadas, e às vezes severas, da pandemia.