“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!“
(Isaías 5:20)
O poeta latino Horácio dizia que o homem era apenas “pó e trevas”, Thomas Hobbes pensava que era “lobo do homem, em guerra de todos contra todos” e Freud traçou um retrato sombrio da alma humana. Em “Os meus demónios”, Edgar Morin escrevia que “A crueldade é constitutiva do universo, é o preço a pagar pela grande solidariedade da biosfera, é ineliminável da vida humana”, e John Lennon afirmava: “Vivemos num mundo onde precisamos nos esconder para fazer amor, enquanto a violência é praticada em plena luz do dia.”
O episódio do abraço de um jovem senegalês desesperado a Luna Reyes, uma voluntária espanhola da Cruz Vermelha que lhe prestava auxílio e atenção no momento crítico em que pisava o enclave espanhol de Ceuta, veio revelar de novo o lado mais negro que habita os seres humanos. A jovem voluntária foi rapidamente alvo de uma rajada de abusos perpetrados por adeptos do partido de extrema-direita Vox, mas também de outros cidadãos do país vizinho, incomodados com a chegada destes migrantes, o que a obrigou a privatizar as suas redes sociais e a desligar o telemóvel.
Luna é uma estudante de 20 anos que presta serviço na organização como parte prática dos seus estudos: “Eles viram que o meu namorado é negro, não paravam de me insultar e dizer-me coisas horríveis e racistas”. A jovem considera que, afinal, abraçar um desesperado e exausto nestas circunstâncias é a coisa mais normal do mundo. O recém-chegado estava a chorar porque alguém lhe disse que o amigo morrera no mar. Ela deu-lhe água, estendeu a mão e ele abraçou-a instintivamente: “Esse abraço foi a sua boia de salvação”.
A Cruz Vermelha espanhola viu-se obrigada a vir a terreiro defender a sua voluntária: “Somos una organización en la que hay muchas Lunas, que ayudan a diario a personas como las que llegan a Ceuta. O a Arguineguín. O a Canarias. O que están en tu barrio. En todo el mundo.” Rita Maestre,a presidente da Câmara de Madrid revelou indignação pelos ataques e posicionou-se no Twitter contra o ódio:“Não vamos permitir que o ódio vença”, declarando: “os que vêem este abraço como um símbolo do melhor do nosso país superam os outros.” Até o secretário-geral da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, Jagan Chapagain, a louvou: “Luna representa o que temos de melhor. Obrigado, Luna, por brilhares, obrigado por mostrares ao mundo como é a humanidade.”
Várias figuras políticas do país vieram também a público apoiar a jovem estudante, agradecendo-lhe por ela representar “os melhores valores da nossa sociedade”, ou por ter sido “um símbolo de esperança e solidariedade”. Luna nunca mais viu o jovem senegalês nem sabe o nome dele. A verdade é que, tal como a jovem confessou, os voluntários não estavam preparados para enfrentar um drama daquela dimensão.
Porque será que suscita cada vez menos estranheza a qualquer pessoa decente este tipo de comportamentos indignos e desumanizadores numa Europa que anda de cabeça perdida? Por que razão a Espanha católica parece disposta a chocar este ovo de serpente chamado Vox, numa atitude violenta e muito pouco cristã? Será que se perdeu a memória do holocausto nazi, dos desmandos fascistas e dos crimes estalinistas do século passado? Onde estão os valores cristãos? O populismo de extrema-direita costuma invocar os valores cristãos apenas como fachada para aceder ao poder e exercê-lo.
Em obra recentemente publicada a jornalista Patrícia Campos Mello (“A Máquina do Ódio”, Quetzal, 2021) traça o retrato dos gabinetes do ódio dos políticos populistas que enviam fake news em massa através das redes sociais a fim de condicionar as eleições e a opinião pública, tendo ela própria sido alvo de difamação e linchamento virtual por ter exposto os podres do poder. Está provado que o WhatsApp interferiu nas eleições brasileiras em 2018, e a Cambridge Analytica com Steve Bannon como vice-presidente “protagonizou o maior escândalo da história das redes sociais.”
Temos visto este mesmo filme na Europa e nas Américas. Arrisco até a dizer que Estaline era muito mais honesto nesse sentido do que outros ditadores e carniceiros que invocavam o nome de Deus, compareciam nos serviços religiosos e apoiavam os líderes espirituais, uma vez que o georgiano nunca cometeu os seus crimes em nome de Deus.
Não há nada pior para a fé do que um falso cristão, da mesma forma como os piores inimigos da fé judaica nos dias de Jesus eram os fariseus, saduceus, escribas e sacerdotes que invocavam constantemente o nome de Deus mas agiam em sua negação: “Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mateus 15:7,8). Jesus Cristo ensinou que até mesmo o simples acto de dar um copo de água a alguém com sede é altamente significativo. Afinal, foi o que fez a Luna ao desafortunado senegalês…
Esta coisa de deitar os valores para o balde do lixo em nome duma pretensa segurança ou da pureza e superioridade racial já devia ter passado à história, depois da experiência do apartheid na África do Sul e da segregação racial nos Estados Unidos, para não falar de vergonhas mais antigas. Mas não. A natureza humana permanece na mesma desde a bruma dos tempos. Aldous Huxley estava convencido de que “talvez a maior lição da História seja a de que ninguém aprendeu as lições da História.”
A forma como tratamos os outros diz muito do que somos. E não importa se se trata de velhos, crianças, portadores de deficiência, imigrantes ou quaisquer outros seres humanos, especialmente os mais vulneráveis. O direito à dignidade é intrínseco a toda a pessoa. O exercício da misericórdia, que significa baixar o nosso coração à miséria do outro, está cada vez mais difícil.