Os pediatras são pessoas incríveis. Lembro-me bem da minha. Não se esquecia de aquecer o estetoscópio antes de o encostar a mim, ou os velhinhos termómetros de vidro, distraía-me enquanto me palpava a barriga, para não sentir cócegas. Viu-me até ter vinte anos, ou assim. Para eles, nós não crescemos. Creio que há uma parte deles que também não. Têm sempre um pequeno Peter Pan lá dentro.
De recém-nascidos de quinhentas gramas a adolescentes de dois metros, conseguem ajustar-se e adaptar o comportamento deles de modo a conseguirem detetar, ao mínimo sinal, uma doença que possa estar a evoluir ou uma alteração num crescimento que se quer saudável. Transportam com eles uma responsabilidade imensa, de garantir que os adultos de amanhã serão pessoas o mais saudáveis possível, mas parecem nem se dar conta disso. Conseguem desconstruir medos irracionais de pais e cuidadores inexperientes, tranquilizá-los quanto a preocupações inimagináveis, confortá-los quando algo corre mal – e aqui, correr mal, é sempre muito mau, é sempre pior do que qualquer outra situação. E ainda conseguem algo verdadeiramente invejável para os outros colegas: uma coleção de desenhos infindável.
Durante o período conturbado por que temos passado, os colegas de várias especialidades foram integrados em equipas multidisciplinares por forma a reforçar o apoio em atendimentos de urgência e internamento, para doentes com e sem Covid. Lá foram os pediatras desencantar os estetoscópios de adulto já no fundo da gaveta, substituir as canetas de bonecos por outras banais e reaprender a ver e tratar doentes adultos. A medicação deixou de ser ajustada ao peso do doente, já não é necessário evitar picadas de agulhas, já não são os pais a contar o que se passa. E, como outros médicos, arregaçaram as mangas, deixaram-se de coisas e saíram da área de conforto.
Os pediatras do meu hospital são especiais. Perdoem-me os outros todos, mas são. Não desfazendo. No centro hospitalar que mais internamentos teve com doentes infetados por Covid, a colaboração de todas as especialidades no reforço às equipas de internamento não foi igualmente espontânea e linear. Ainda assim, contámos com a ajuda inestimável de muitos colegas durante os horários normais de dias úteis. Agora, os pediatras… Os pediatras organizaram-se entre eles e montaram uma escala de apoio às enfermarias em períodos desfasados extra-horário. Ou seja, cumpriam o horário deles de 40 horas de pediatria e ainda vinham em períodos de quatro horas, ou mais, reforçar as equipas de enfermaria a partir das quatro da tarde e até à meia noite, mais dias de fim-de-semana. De forma totalmente voluntária, não remunerada. Abdicaram de tempo pessoal para ajudar os colegas a ver doentes adultos. Todos os dias, sem exceção, havia dois colegas escalados. Lá vinham eles, ao fim de um dia de trabalho, ajudar a ver doentes acabados de chegar da urgência, situações de descompensação, o que fosse necessário. Com uma energia contagiante, sempre disponíveis. Colocavam-nos dúvidas simples que nos faziam voltar a refletir sobre pormenores afinal tão importantes, com uma perspetiva nova. Uma verdadeira lufada de ar fresco.
Se houvesse uma pandemia que afetasse especificamente uma parte do corpo em que não dominasse sinais e sintomas, por exemplo, doenças de pele, do ouvido, do olho, em que é tudo mais específico e minucioso, não sei como seria capaz de despender de tempo pessoal para estudar novamente esses conteúdos e ainda ir para uma enfermaria ajudar voluntariamente com esses doentes. Voltar a sentir-me estagiária, insegura, com necessidade de validar cada passo com alguém de outra especialidade. Por iniciativa minha.
Não há louvores que façam jus à atitude dos nossos pediatras. Estamos profundamente gratos a todos os que nos ajudaram. Mas, caros pediatras, vocês são especiais. Se há situações em que quase perco a fé na medicina, pela forma como a vocação de alguns colegas fica abandonada no caminho, ou nem sequer chegou a passar da casa de partida, aqui, volto a acreditar no verdadeiro espírito de entreajuda, no vestir a camisola, no querer mudar a humanidade. Se Hipócrates hoje fosse médico, certamente seria pediatra.