Caros doentes crónicos,
Saibam, antes de mais, que não estão esquecidos. Não se zanguem connosco. A nossa preocupação convosco pesa-nos todos os dias na consciência.
Sabemos que muitos de vós lidam todos os dias com um dos piores sintomas que pode haver: a dor. Alguns mais de manhã, outros mais à noite, nalguns o dia todo. Uma dor que apenas alivia com medicamentos, mas que nunca passa, e os vossos dias evoluem em função do que ela vos permite fazer. Com o confinamento, acabam por mover-se menos, ganham mais peso e, com ele, mais dores de costas, de ancas, joelhos. Já não vos podemos sugerir fisioterapia, hidroginástica, caminhadas; e as articulações vão ficando mais perras. Raramente vos conseguimos ouvir sequer os desabafos e as queixas e temos muito pouca margem para vos receitar mais medicação.
Sabemos que outros de vós acordam imobilizados, em que a coluna se estende até à cabeça como se fosse um único bloco, como se estivesse congelada, e nem mesmo para calçar as pantufas se conseguem dobrar. Que às vezes demoram horas até conseguirem virar o pescoço. Nalguns, são as mãos e os pés que paralisam os dedos como se fossem garras inchadas e dolorosas. Que, por causa disso, têm de se levantar 2 horas mais cedo antes de sair para o trabalho, porque só quando as mãos começarem a mexer é que se conseguem arranjar. Mesmo evitando as camisas de botões, os sapatos de atacadores. Noutros de vós são os músculos que latejam e não vos deixam pentear ou subir escadas. Nas mãos surgem feridas novas, na pele surgem manchas. Pedimos que fotografem as lesões e nos enviem por mail. Alguns estão mais cansados, é cada vez mais difícil fazer esforços, têm de dormir com mais almofadas, quase sentados, acordam a meio da noite com falta de ar. Noutros vão surgindo formigueiros nas mãos e nos pés, as plantas encortiçadas. Facilmente percebemos que tudo isto são doenças descompensadas, que precisam da nossa atenção.
Sabemos que é frustrante terem uma consulta marcada, ainda que telefónica, e não receberem nenhuma chamada nossa. Os administrativos e os enfermeiros são os nossos anjos da guarda, que vos atendem e respondem aos mails e nos encaminham recados urgentes, pedidos de receitas, de relatórios. Também é frustrante para nós. Muitas vezes precisamos de saber o que se passa do lado de dentro do vosso corpo e há atrasos nas marcações de exames. Aliás, ficamos na ambivalência de vos pedir exames no hospital, e ter-vos a circular entre corredores potencialmente infetados, ou socorrer-nos da ajuda dos médicos de família para prescrições de credenciais para o exterior. Mas eles estão igualmente assoberbados com telefonemas para doentes infetados com COVID em casa, também eles sozinhos. Doentes e sozinhos. Doentes e isolados. Doentes, sem ninguém que lhes leve um chá, uma sopa à cama. E que, por isso, sem nenhum médico que vos ajude, se sentem totalmente abandonados.
Assusta-nos que as vossas doenças, que nem sempre controlamos como gostávamos, possam agravar silenciosamente. Pelo telefone não vos conseguimos ver, tocar, auscultar. A sensação subjetiva de doença, o ar de doente, é algo que desenvolvemos com os anos e cria atalhos na conversa para chegarmos sem rodeios ao problema principal. Assim, não vos conseguimos ver. E também sabemos que alguns de vós desvalorizam alguns sintomas novos que aparecem, outros que agravam, por medo que vos convoquemos ao hospital, o receio de apanhar COVID ao circular em transportes, na rua, na sala de espera. Sim, é verdade. Temos algumas consultas presenciais. Mas não é por preferência, é mesmo porque há doenças em que a mínima descompensação pode deixar um doente incapaz para o resto da vida. Ou mesmo sem vida.
Alguns de vocês são bem mais novos que eu. Engane-se quem acha que as dores surgem com a idade. Não imagino o que seja encaixar aos vinte e poucos anos, ou antes ainda, que se tem uma doença para a vida, potencialmente incapacitante. E, a muitos, fui eu que vos dei a má notícia e tentei tranquilizar-vos, garantindo-vos que não estavam sozinhos no caminho. Que éramos uma equipa presente, sempre pronta para vos ajudar. Que, na minha ausência, havia sempre um colega que saberia tratar-vos. Que havia uma rede e estavam seguros. Agora a rede está a esgaçar, mas continuamos a não querer deixar cair ninguém.
Sei que muitos de vocês já esperaram horas pelas minhas consultas, por saberem que fiquei retida no internamento com algum doente descompensado, e me viram atravessar a sala de espera a correr, com uma sanduíche na mão. Que alguns de vós já me conhecem há uns anos e que se preocupam comigo, Então a família?, Está melhor das enxaquecas?, Então e como correm lá esses estudos que anda a fazer?. Essas mesmas cumplicidades, de escassos minutos, também a mim me fazem falta.
Os nossos dias têm sido cada vez mais longos e já não sabemos bem como funcionam as semanas. Os dias no hospital são imprevisíveis e saímos da enfermaria COVID diretamente para um sofá ou uma cama, estoirados. Os dias fora do hospital voam demasiado depressa e não chegam para nos refazermos, para nos reconstruirmos. Como para muitos de vós, a nossa vida parou em Março de 2020. Só que a nossa vida não é só a medicina. E mesmo a medicina, não se resume a internamento, consultas e urgências. Interrompemos os nossos estudos e ensaios clínicos, reduzimos a atividade do hospital de dia, suspendemos os projetos de investigação, preparados com afinco durante meses. Parámos as aulas na faculdade, os nossos alunos deixaram de poder aprender connosco, porque não os podemos expor ao risco da infeção. Alguns de nós, tivemos de parar mestrados e doutoramentos, indefinidamente, com os custos que isso implica. Não foram só vocês; também nos deixámos a nós próprios ficar para trás.
Tenho um dossier com as listas de marcações de todas as minhas consultas desde Março. A fluorescente, estão os nomes dos doentes a quem ainda não consegui ligar. Os papéis acumulam-se e o marcador vai perdendo tinta. Mas ninguém está esquecido. Por isso, por favor, não se zanguem connosco. Comigo e com tantos outros colegas. E, se o corpo vos der sinais de que algo de novo não está bem, oiçam-no e procurem-nos. Peçam ajuda. A rede existe.