Desde outubro que se perspetivava o recrudescimento da Covid-19, com mais casos, mais trabalho para os hospitais e mais mortos. Só um mês depois, e já com uma contabilidade diária de mais de 5 mil casos, se iniciou um confinamento soft com vista a libertar o Natal. Viram-se depois alguns resultados positivos (descida, ainda que tímida, de novos casos, mas ainda não consolidada) e houve a trágica abertura do Natal. Os números rapidamente dispararam para valores impensáveis a partir de janeiro. É certo que o aparecimento da variante inglesa, à mistura com a brasileira e a sul-africana, poderão ter potenciado a explosão incontrolada de novos casos, com as consequências que se conhecem na atividade hospitalar e nos óbitos. Mas o problema maior esteve na falta de decisão política, firme, coerente e sem medo.
A situação que hoje se vive é de enorme preocupação, com serviços sem mãos a medir, profissionais desesperados, doentes a esperar horas intermináveis por cuidados básicos, morgues invadidas de cadáveres, famílias e doentes em sofrimento extremo.
Portugal ocupa hoje em dia o pior lugar ao nível da EU no combate à COVID. Somos, de longe, o País que apresenta mais casos por milhão de habitantes nos últimos 14 dias e o mesmo se passa com o ratio das mortes (ECDC, relatório atualizado de 28 de janeiro de 2021).O número de doentes internados com COVID aumentou 2,3 vezes entre 1 e 28 de janeiro, e todos se interrogam como tem sido possível o SNS estar ainda a dar uma resposta capaz neste cenário de explosão da procura.
As ambulâncias começam a acumular-se à porta dos principais hospitais de Lisboa, mas importa perceber que apenas 15% desses doentes necessitam de cuidados hospitalares. Os restantes deveriam ser encaminhados ou dirigir-se aos centros de saúde ou ficar em casa com acompanhamento à distância. O que está a acontecer faz parte da nossa tradicional desarticulação entre cuidados primários e hospitais e, também, segundo parece, a uma triagem menos eficaz por parte do CODU/INEM. Não é aceitável que se encaminhem para os hospitais, numa situação de forte pressão sobre os profissionais, doentes com afeções simples que podiam ser analisadas, com vantagens para todos, em unidade de cuidados primários. Às dificuldades inerentes ao tratamento dos doentes graves, acrescenta-se a desorganização entre estruturas de resposta.
Os óbitos são o acontecimento que a todos mais impressiona. Só nos primeiros 27 dias de janeiro morreram por Covid-19 40 % do total das vítimas desta pandemia desde o seu início, há 11 meses. O excesso de mortalidade ao longo do ano de 2020 (com base na média dos últimos 5 anos) teve três picos a assinalar: a)em abril (mais 1500 óbitos), em que a Covid-19 foi responsável por 54% desse excesso; b) em julho (mais 2200 óbitos) em que o fator Covid-19 teve pouca expressão (apenas 7,1% dos casos); e nos últimos 3 meses do ano (mais cerca de 7 mil óbitos) em que a Covid-19 foi causa quase sempre maioritária (45% em outubro, 82% em novembro e 97% em dezembro). Já neste mês de janeiro, registou-se um aumento substancial de óbitos face ao mês homólogo de 2020 na ordem dos 6900 falecimentos (+68%), dos quais 4400 atribuíveis à Covid-19 (64%). Percebe-se a tendência para que a pandemia se torne, à medida que esta 3ª vaga cresce, o grande fator explicativo para o excesso de mortalidade, como aconteceu sobretudo em novembro, dezembro e agora em janeiro.
Convirá também anotar que a gripe, ao contrário do que é habitual nesta época do ano, não tem tido a expressão de outros anos na procura hospitalar.
Tomando o passado mês de dezembro, os casos de gripe nas urgências hospitalares passaram de cerca de 10 mil em 2019 para apenas 170 casos em 2020 e as infeções respiratórias caíram cerca de 85% no mesmo período. Explicações para este fenómeno não são conhecidas mas poderão, em parte, ter a ver com o receio das pessoas, nesta altura de forte ação pandémica, em dirigir-se aos hospitais, mormente aos serviços de urgência.
Este receio generalizado de ir aos hospitais, associado ao cancelamento de consultas, exames e internamentos programadas, fez com que em 2020, e apesar de termos registado um crescimento da mortalidade superior a 10% face ao ano anterior, o número de óbitos registado nos hospitais do SNS diminuísse em 37%, apresentando o valor mais baixo de sempre. Os óbitos ocorridos nos hospitais passaram, assim, de cerca de 47% do total (2019) para apenas 27% (2020), o que significa que, em contrapartida, aumentaram no domicílio, nos lares, nas instituições de saúde privadas e nos cuidados continuados. É uma análise que deverá ser realizada e que nos poderá dar pistas sobre o que terá representado a ausência de apoio dos hospitais do SNS para a vida de muitos doentes.
Para agravar este quadro, só faltava que o programa vacinal contra o vírus apresentasse também fragilidades e incertezas. Infelizmente é o que está a acontecer. Atrasos na entrega por parte dos fabricantes, lentidão no processo de administração, alguns desperdícios, são imponderáveis que por vezes não se conseguem controlar. Mas já não será razoável ter uma lista de prioridades mal concebida e ao arrepio dos objetivos essenciais. Pareceu sensato que a Comissão de Vacinação colocasse agora os mais velhos na linha da frente da vacinação, porque são os que mais probabilidade têm de falecer, mas já me parece desadequado que se passe, de supetão, uma imensidão de políticos para a lista de prioritários. O disparte e os privilégios têm limites éticos que deslustram quem os ultrapassa. Do mesmo modo, não é aceitável o rol de abusos por parte de oportunistas que se põem em bicos de pés para receber a vacina à frente de pessoas prioritárias. Devem ser publicamente censurados e juridicamente criminalizados.
As coisas não estão realmente a correr-nos bem. O confinamento severo e sem grandes exceções é o caminho longo que deveremos seguir. Precisamos urgentemente de travar a propagação do vírus. Confiemos no SNS, nas instituições e nos profissionais, que têm feito um trabalho sem limites e de elevada qualidade e dedicação a todos os doentes. E, sobretudo, não caiamos em sensacionalismos fáceis ou em boatos insensatos e, nalguns casos, propositados