O COVID desafia todos os nossos mecanismos de defesa. Antes de ingressar no curso de medicina, frequentei o curso de enfermagem e creio ter uma visão abrangente dos dois mundos. Não nos ensinam a lidar com isto na faculdade. Não vem nos livros. Não há estudos nem normas de orientação que nos guiem. Não estamos em guerra, nem numa missão num país em vias de desenvolvimento. Estamos em casa, no nosso quotidiano europeu, que julgávamos seguro.
No rescaldo de um turno de 18 horas seguidas a trabalhar num hospital com doentes infectados pelo vírus Sars-Cov2, espalhados por 8 enfermarias, mais de 200 doentes a cargo da minha especialidade, Medicina Interna, sou confrontada com situações que não tenho tempo de digerir. É-nos solicitada acção imediata a todo o instante, o telefone de coordenação e gestão de ocorrências urgentes toca sem parar, toda a tarde, toda a noite. Lemos processos, ouvimos as intercorrências entre algumas falhas de rede, actuamos. Mas raramente temos tempo para reagir.
Num quarto de duas camas, está uma mãe gravemente doente, com uma pneumonia galopante; ao lado, o filho autista, que descompensa quando está longe dos pais, mas em situação estável. A mãe tenta disfarçar as dores, a falta de ar, a agonia, para não assustar o filho. O pai foi internado durante a noite, noutra enfermaria. O pesadelo de quaisquer pais de filhos com algum tipo de limitação cognitiva, isto é, deficiência mental, é saber quem poderá tomar conta deles, quando eles falecerem. Vivi de perto esta situação na minha família e continuo sem saber como lidar com estas emoções.
Na mesma noite, é internada uma mulher de 50 e poucos anos, com necessidade de transferência imediata para uma enfermaria com necessidade de oxigénio de alto fluxo, dada o compromisso da sua capacidade de ventilação, para a qual já não tínhamos vaga no nosso serviço. Os pais estão os dois internados no nosso hospital e não sabem o que se passa uns com os outros. As notícias nem sempre são boas e adiamos para a calma do dia seguinte a transmissão de informação.
Já na madrugada, chega-nos da urgência um idoso de oitenta e poucos anos, que, apesar de febril e combalido, estava sobretudo preocupado com a mulher, que ainda aguardava vaga de internamento no serviço de urgência. É frequente termos casais internados, mas tentamos separá-los, porque, infelizmente, nem sempre os dois sobrevivem. Causamos sofrimento de uma maneira, e, ao mesmo tempo, evitamos que sofram de outra. Já tentámos o contrário antes; não foi melhor.
No início da noite, recebo o telefonema de uma familiar aflita, que solicita informações sobre uma doente internada. Não sendo familiar directa, não pude transmitir o que se passava com a doente. Esta já tinha falecido, mas, tendo sido informado um filho, com relação distante da restante família, tive de privá-la de qualquer tipo de conforto ou possibilidade de luto. Isto, enquanto jantávamos a correr, com uma longa lista de recados para resolver.
Simultaneamente, um enfermeiro telefona-nos a comunicar um óbito; avisamos a família, que se tinha conseguido despedir durante a tarde. Umas horas mais tarde, ocorre outro falecimento – até que horas é sensato ligar a informar uma família sobre a morte de um ente querido? Ao mesmo tempo, temos de agilizar a transferência do corpo para a casa mortuária, já que a cama é necessária para internar um dos muitos doentes que aguardam vaga num serviço de urgência sobrelotado.
Durante madrugada, dois doentes, na casa dos setentas, descompensam. Primeiro um, vestir fato, máscara, perneiras, óculos, viseira, a correr. Ausculto, gasimetria, medico, não melhora. Mais medicação, mais oxigénio. Vamos dar tempo para a terapêutica fazer efeito. Segundo doente. Já anteriormente tinha feito medicação. Ausculto, nova análise rápida de sangue, medico. Ajusto a máquina de ventilação não invasiva à cabeceira, que teima em apitar. O doente não se adapta, os restantes doentes do quarto queixam-se por não conseguirem dormir com o barulho do aparelho. Mais medicação, mais oxigénio. O desconforto é evidente e o doente está consciente e fala connosco o que o fôlego lhe permite. Mais medicação. Agora sem máscara oclusiva, sem aparelho. Máscara simples, oxigénio no máximo. Não chega, mas os recursos são limitados e não há vagas para incremento de medidas invasivas. O que há a fazer é ali, naquele instante. Ficamos de pé, eu e um enfermeiro, expectantes, para perceber se o doente melhora. Ora olhamos para o doente, ora para um monitor que nos dá a saturação de oxigénio. Ainda não é suficiente. Pedimos mais uma bala de oxigénio, para acrescentar uma cânula nasal à máscara que já está a fornecer oxigénio. Mais medicação. Não podemos fazer mais, sob pena de o doente descompensar por outra via. Parece serenar, o oxímetro chega a valores razoáveis. Deixamo-los descansar, aos quatro doentes do quarto, e saímos. Já passou mais de meia hora, mas só o percebemos já no corredor. Volto ao primeiro, já bastante melhorado.
Regressamos ao serviço principal, tentamos registar tudo o que fizemos, enquanto os dedos trocam as teclas e nos obrigam a ler várias vezes o que escrevemos. Revemos os recados pendentes, conferimos a lista de doentes que aguardam transferência do serviço de urgência. Mais algumas chamadas, que conseguimos gerir à distância. Comemos qualquer coisa já 8 horas depois de termos jantado. Apercebemo-nos que temos de ir à casa-de-banho, que as pernas latejam e a cabeça pesa toneladas.
Éramos três médicas para 8 enfermarias, mais de 200 doentes. Connosco, dezenas de enfermeiros e auxiliares, distribuídos pelas suas alas. Só durante este período, vimos a nossa humanidade ser posta à prova em várias situações que vão muito para lá de conhecimentos médicos. O que fazer com estes afectos? Não temos tempo para assimilar o que se passou. O corpo está cansado, precisamos de dormir. Amanhã esperam-me mais 12 horas. Todos os dias são diferentes. Desde Março.