Há umas semanas, alguns textos circularam a falar da ironia da Covid-19 ser a doença dos ricos. Atacava os grandes centros urbanos dos países mais industrializados e desenvolvidos. Mais, atacava quem fazia deslocações internacionais frequentes. Era uma doença que parecia ter um foco seletivo.
Mas, se os dados davam para fazer esta trajetória no início da pandemia, rapidamente se percebeu que era apenas uma questão de “oportunidade”. Assim que pôde passar para quem não viajava e para os países mais pobres, não houve barreira ética ou moral que o vírus autoimpusesse. Hoje o vírus é democrático naquilo que a democracia tem de pior: chega a todos, mas nem todos têm a mesma capacidade para lidar com ele.
E o mesmo já se está a passar com as repercussões. Como seria natural de perspetivar, foram exatamente os que viajam menos que demograficamente foram mais afetados pela doença, os idosos, por exemplo. Mas pior, foram também os que viajam menos, porque não têm meios para o fazer, que hoje estão desempregados ou em risco de ficar sem sustento no tempo mais próximo.
É de uma ironia tremenda este vírus na sua forma de atuar socialmente. Expande-se através das ferramentas da globalização, mas ataca quem está isolado nos lares de terceira idade. Chega em primeiro lugar, parecendo seletivo, aos países europeus e aos EUA, mas não conseguimos imaginar os danos que irá causar em África ou na América do Sul.
Agora, já a pensar no day after, equacionamos programas de apoio ao comércio, à indústria, à cultura. Mas como todas as gigantescas medidas, estas vão pecar por se dirigirem às estruturas mais significativas e deixar de fora muitos que já antes se encontravam nas margens do sistema, em empregos e tarefas que passam hoje ao largo dos apoios – as empregadas domésticas são um exemplo gravíssimo em que muitas viviam em absoluto modelo de “economia paralela”, não podendo hoje entrar no sistema de apoios.
Tal como este caso, muitos outros a nossa economia tem, dentro do que dantes se diziam serem os biscates. Todo este universo, já frágil antes da pandemia, está hoje numa situação de exclusão iminente. Teremos um largo grupo de excluídos irremediáveis no processo de retoma.
Tal como teremos um largo grupo de desempregados que, embora antes tivessem situações fiscais perfeitamente definidas e legais, hoje irão entrar num processo de recuperação que será longo. Talvez longo demais para os seus agregados familiares.
Ser solidário vai ser uma atitude que nos vai ser pedida durante muito tempo.
E teremos de o ser.