“Dois homens batem à porta. ‘Bom dia, minha senhora, viemos para instalar o medo. E, vai ver, é uma categoria’.”
Rui Zink, A Instalação do Medo, 2012.
O medo é uma categoria que se espraia pela nossa sociedade exatamente na proporção oposta à perceção de segurança. Quanto mais inseguros nos sentimos, mais medo temos. O único problema, na aplicação prática à nossa sociedade, é que temos uma perceção completamente oposta à realidade: sentimos uma sociedade violenta quando temos um dos níveis mais baixos de violência de todo o globo.
O texto de Rui Zink, leitura mais que recomendável por estes dias, é avassalador como nos coloca, de forma por vezes quase ridícula, perante o modo como aceitámos as mecânicas de construção do medo. O “instalador do medo” surge em casa como um qualquer técnico de TV ou de telecomunicações que nos vai instalar um serviço generalizado. É desconcertante, mas é o perfeito retrato do que somos.
As liberdades individuais há algum tempo que foram sacrificadas em nome da suposta segurança. Vemos bairros inteiros a pedir aos municípios a instalação de videovigilância, pululam as apps que vivem da georreferenciação como uma das faces mais importantes do produto que vendem. No final, quase todos temos telemóveis que permitem uma total radiografia ao que fazemos e que reúnem dados para um retrato de hábitos de consumo, de comportamentos, etc.
Não seria de estranhar o passo que hoje temos à nossa frente. Se na Idade Média os leprosos tinham de se fazer anunciar por um sino que permitia que todos se afastassem, hoje queremos saber quem está infetado para nos “protegermos”. Nada melhor que uma app nos telemóveis, dando-nos, em tempo real, a aproximação de algum infetado. Tudo em nome da segurança de cada um de nós e do coletivo.
Mas há quem pense mais à frente e avance com propostas caninas, dizendo que poderíamos, até, usar um pequeno chip como os animais domésticos que desse às autoridades a capacidade de ver se os infetados quebram as medidas de confinamento. Nada mais acertado! Orwell coraria na sua imaginação perante a nossa realidade!
O chamado “contact tracing”, supostamente usado com muita eficácia na China e em Singapura permite reconstruir os passos de cada pessoa, identificando com uma maior eficácia os possíveis elos de contágio. Tudo parece estar certo e perfeito, mas nada regular….
Não é que não devamos dar uma luta sem tréguas a este e a outros vírus que nos assolam. Mas temos de colocar limites éticos a este cavalgar assombroso rumo ao controle total das nossas vidas. Hoje é numa situação de pandemia, e parece-nos um sacrifício aceitável, amanhã é no dia-a-dia, porque já estamos habituados e pode ser sempre de alguma utilidade num caso de rapto, violação, etc.
Felizmente, os nossos líderes políticos e nosso Tribunal Constitucional parecem ainda ter os ditos valores bem estruturados nas suas mentes, desmentindo estes passos tremendos. Mas o mais dramático é que, tal como nas questões de videovigilância, vamos acabar por ser nós a pedir para ter um chip no pescoço que permite, numa central algures, saber exatamente a que horas fomos fazer chichi, e tudo o resto.