Há uns anos realizei um dos meus sonhos enquanto vivenciador de intensidades da forma de vida humana. Fui a uma procissão das velas em Fátima numa noite de 12 de maio. Repeti a experiência no ano em que o papa Francisco visitou o santuário e eu estive residente a comentar o momento para a SIC.
É único estar naquele mar de gente, a quantidade de velas, os rostos de devoção. É ali, entre outros grandes locais de peregrinação do mundo, que percebemos a dimensão de comunidade da religião, de partilha e de irmandade.
Mas este ano vai ser diferente e, para já, a Páscoa já o foi, e muito. Outro dos meus sonhos é passar a Semana Santa em Sevilha e assistir às procissões, ver toda a herança de práticas de flagelação que ali ressurgem como uma cápsula do tempo. Já não se flagela, pelo menos em público. Mas vivi a intensidade dessa vontade individual e coletiva quando assisti à prática de flagelação na Mesquita xiita de Ruqayyah (filha mais nova de Ali), em Damasco – não se fica igual depois de certas experiências.
Mas hoje o silêncio sobrepôs-se aos ritos de grandes massas, de cantares e de dores expressadas de forma estridente. Que vazio nos trouxe esta Páscoa? Enquanto uns tentavam ocupar o espaço deixado livre das procissões com carro a percorrer as ruas com orações ditas a megafone, o Papa orava numa Praça de S. Pedro imensa de vazio, imensa e prenhe de silêncio.
Entre uns e outros está a necessidade de responder a esse grande desafio. Mas as respostas são, quase sempre, as de ocupar esse espaço vazio. Mais uma vez parece que estamos sem saber como ir às nossas próprias tradições respigar umas quantas sementes para lançar na terra que hoje está fértil.
Falamos tanto em mindfullness, em trabalhar a atenção, criar foco e gerir o silêncio. O oriente tem sido o nosso grande supermercado de espiritualidade e parece que apenas ficamos espantados ao ver Fátima deserta no dia 13 de Maio. Sim, merece espanto, mas merece muito mais da nossa capacidade de equacionar. Não de dar respostas, mas de fazer equações e imaginar variáveis.
Algumas tradições iniciáticas ainda cultivam a “sabedoria do silêncio”, tal como o fazem, com algumas variáveis, os trapistas, os cartuxos e os carmelitas. Mas o silêncio ecoa forte nas nossas necessidades intuitivas de ocupar o vazio, esquecendo que o vazio é o campo mais fértil, ou para se preencher com o primeiro som que vier ao ouvido, ou para ser trabalhado e ser preenchido por belas melodias.
Não, a resposta que Francisco procura numa Praça de S. Pedro vazia não é apenas o desejo de a voltar a ter cheia. Vai tê-la, não tenhamos dúvidas. O puro e pleno desejo é o de transmitir a beleza e o sentido transcendental dessa ausência de frenético movimento.
A maior dificuldade que espiritualmente a confinação nos trouxe é a incapacidade que temos em estar sozinhos no confronto direto com o nosso interior. Como seria, cada um de nós, estar no centro do santuário de Fátima, à noite, sozinho? Ou na Praça de S. Pedro? Ou em casa, junto a uma janela a ver a paisagem, lá fora, livre de nós.
Cada um fora da paisagem; fora do ruído; fora das distrações.
Dentro de si.