Os momentos de exceção como o que vivemos hoje criam verdadeiras incongruências simbólicas ou até de sentido. Perdemos o sentido dos símbolos e vivemos tantas vezes os calendários de forma apática e sem compreender o sentido profundo que os principais marcos nos revelam.
O núcleo mais central da Páscoa cristã começa hoje, recordando-se a prisão de Jesus e a Última Ceia, dando-se início ao ciclo da reinterpretação que a figura de Jesus faz da Pessach judaica, que teve início ontem. A simbólica original é a da “passagem”, o significado da palavra em hebraico, e o ponto de chegada cristão é a ressurreição, uma outra passagem, no quadro de um sacrifício.
A Pessach judaica radica na passagem da servidão para a Terra Prometida, na fuga através do Sinai para uma identidade própria. Antes do ciclo descrito na Bíblia, que vai do Egipto para Canaã, não há Povo. É este o evento que, mais que marcar a passagem e a fuga para um território próprio, marca o arranque de uma identidade, de uma cultura, de uma nação.
A Pessach é comunidade. É também família, mas é mais, é o todo que se identifica com esse ato criador de um coletivo. Neste sentido, a Páscoa cristã manteve toda essa dimensão de vivência familiar de uma festa de identidade coletiva. A Páscoa é, sem qualquer sombra de dúvida, a peça central na fé cristã.
Mas neste ano 2020, quer a Pessach, quer a Páscoa serão vividas fora da sua essência. Não haverá a materialização da ideia de “passagem” na viagem para um local onde seja vivida de forma mais tradicional, em família. Não haverá as grandes demonstrações públicas de fé.
Este ano será como que um regresso ao momento zero das “páscoas”, a mãe-de-todas-as-passagens. Se a judaica representa a libertação enquanto povo, estabelecendo-se uma nova aliança através de Moisés, então hoje estamos no momento exatamente anterior: confinados numa servidão que nos retirou a liberdade, somos agora confrontados com a necessidade de reinterpretar a forma como vivemos, usando esta pandemia como catalisador, o ponto de não retorno que nos mostrou que, afinal, podemos fazer uma passagem para uma vida diferente.
Mas mais esta Páscoa confinada nos pode levar a pensar. Se o centro teológico da Páscoa cristã é o sacrifício que permite uma nova Era, então hoje estamos, de facto, a oferecer o que tradicionalmente tínhamos para algo de maior e de futuro. Não é uma Salvação teológica, escatológica, mas é a salvação de uma espécie e de muitos milhares dos seus membros o que esta renúncia implica.
A Páscoa é oferta, sim. E nesta, renunciando, oferecemos o que dantes se fazia, esperando que o retornemos a fazer em anos vindouros.