Recebemos com estupefação e incredulidade a notícia, na passada semana, de que as horas extraordinárias no SNS tinham disparado até novembro para 15% mais do que no ano anterior.
Nada o fazia prever. A atividade dos hospitais caiu para valores nunca vistos em anos anteriores, apesar da COVID, as listas de espera dispararam, os centros de saúde deixaram de atender doentes e chamadas, e teme-se que muitos doentes crónicos deixaram de ser acompanhados. Ao mesmo tempo, os hospitais laboram este ano, em média, com mais 8% de efetivos do que no ano anterior e foram ainda reforçados por causa da COVID, com um orçamento suplementar que lhes garantiu mais profissionais.
Toda esta convulsão no SNS teve naturalmente origem na pandemia que vivemos: os serviços fecharam portas para doentes programados para acautelarem disponibilidade para os novos doentes infetados pelo vírus, os doentes crónicos tiveram receio de se deslocar aos serviços, os cuidados primários deixaram de referenciar novos doentes para os hospitais e esta combinação negativa fez com que a atividade clínica baixasse extraordinariamente.
Sabe-se hoje que os doentes COVID, na primeira vaga, não pressionaram a capacidade do SNS, mantendo disponíveis mais de 40% das camas, que ficaram vazias. Não houve resiliência suficiente dos serviços para rapidamente retomar atividade e muitos doentes foram ficando para trás.
Pois bem, este fenómeno de subutilização da capacidade instalada no SNS teve como efeito perverso o aumento do trabalho suplementar e extraordinário. Para qualquer gestor, em qualquer empresa e em qualquer setor de atividade, este cenário seria encarado como absurdo e teriam que lhe explicar muito bem o que tinha acontecido para ele acreditar.
Vamos tentar perceber melhor o que se passou:
1. A concentração de recursos dedicados aos doentes COVID obrigou a encerrar blocos operatórios, ampliar a resposta em cuidados intensivos e em cuidados intermédios. Isso teve um efeito – substituição na oferta hospitalar, que reduziu drasticamente a oferta cirúrgica, mas promoveu as áreas da medicina intensiva. Não se vêm aqui razões para mais horas extraordinárias, bem pelo contrário.
2. Os profissionais dedicados à COVID passaram a trabalhar em espelho, com equipas com horários prolongados que nunca se encontravam. Isso pode ter provocado um aumento de remunerações extraordinárias para alguns profissionais (anestesistas, intensivistas, infeciologistas, internistas, enfermeiros) mas circunscrito a um número reduzido de efetivos. Também nos centros de saúde, a participação dos profissionais em ações de rastreio epidemiológico, contactos telefónicos com doentes COVID e consultas de acompanhamento poderá ter determinado uma alteração de horários e uma maior dedicação aos doentes COVID. Isso mesmo resulta da diminuição da capacidade de resposta aos utentes normais dos médicos de família. Com esta diminuição da resposta parece não se justificar um aumento de horas extraordinárias, exceto quanto aos médicos e enfermeiros de saúde pública, corpo com muito poucos efetivos e que estão a fazer, neste período, um esforço brutal.
3. Os serviços de urgência hospitalar viram reduzida a procura em cerca de 35% entre março e outubro do corrente ano. Seria nesta área que poderíamos ter assistido a uma
redução na constituição das equipas. Até porque é nesta área que consumimos mais horas incómodas e extraordinárias. A forte diminuição da procura teria como resposta de gestão a redução de horas de trabalho e, em alternativa, e se necessário, a sua utilização nas áreas COVID. As horas suplementares diminuiriam também nas urgências internas que poderiam ser mais racionalmente distribuídas (as taxas de ocupação dos hospitais baixaram para menos de 60%).Nada disto parece ter acontecido face ao aumento de horas extraordinárias agora conhecido.
Sublinhe-se, nesta tentativa de entendimento do que se passou, que perdura a ideia generalizada de que as horas extraordinárias são um complemento fixo da remuneração-base, face aos baixos salários que os profissionais de saúde regularmente auferem. Este argumento faz com que os profissionais tenham uma relação de amor/ódio com o trabalho extraordinário, porque isso implica enormes sacrifícios pessoais, mas simultaneamente aconchega a conta bancária. As administrações hospitalares “veem-se e desejam-se” para travar o excesso de horas suplementares, lutando diariamente contra a irracionalidade dos horários, as cargas de horas por turno, o número excessivo de elementos por equipa e por período do dia,etc.
Estes modelos autogestionários, uma tradição perniciosa dos nossos serviços de saúde públicos, afetam decisivamente qualquer estratégia de controlo de encargos com horas extraordinárias e promovem o desperdício. Não havendo, assim, uma estratégia para a gestão dos recursos humanos, é natural que a incoerência e os gastos excessivos se eternizem e se tornem insensíveis a variações inusitadas da oferta e da procura, como está a ocorrer com esta pandemia.
Não deixa de ser espantoso que, constatando este aumento inexplicável das horas suplementares, o mais elevado de sempre, tenhamos agora que utilizar um orçamento suplementar para pagar horas extraordinárias aos profissionais que estejam disponíveis para tentar reduzir as listas de espera que entretanto se foram acumulando. É a cereja no topo do bolo de um processo de todo irracional e que não resiste a uma análise minimamente honesta do que se passa.