Tenho para mim que um dos fatores críticos no funcionamento do SNS se prende com o estatuto dos médicos. Auferem salários baixos, tentam compor rendimentos com a acumulação de horas extraordinárias, por vezes inúteis, e trabalham simultaneamente no setor privado, ao acto e/ou com incentivos. A dedicação plena ao SNS eliminaria rapidamente as listas de espera, rentabilizaria blocos operatórios, hoje vazios em grande parte do dia, e contribuiria para a promoção da investigação clínica e o estudo mais ponderado sobre os doentes e os resultados dos tratamentos.
Vem isto a propósito das recentes iniciativas do BE e do PCP, em sede de discussão na especialidade do OE para 2021. Estes partidos retomam a ideia da exclusividade dos médicos, supondo que desse modo lhes aumentam o vencimento e os retiram do circuito privado, deixando assim mais tempo para o trabalho no SNS. Convém ter presente experiências anteriores de modelos de exclusividade – com Leonor Beleza (1990) – e de aumento do horário de trabalho com majoração em 40% dos vencimentos – com Paulo Macedo (2012).
Em nenhuma destas situações tivemos impactos positivos na atividade do SNS, apenas um aumento brutal da despesa pública. As razões para isso, prendem-se com o modelo remuneratório, baseado apenas em horas de trabalho e não relacionado com o volume e qualidade do trabalho. De facto, se a remuneração se centra apenas no horário, podemos ter resultados muito aleatórios. Médicos que se dedicam e efetivamente se responsabilizam pelos doentes e tentam reduzir tempos de espera, médicos que continuam a fazer o mesmo, não se preocupam com os doentes em espera e estão mais disponíveis para sair cedo e ir trabalhar aonde auferem rendimentos mais generosos. A exclusividade pode retirar esta componente mas não impede aquela atitude e aquele desinteresse.
Não é por acaso que os modelos remuneratórios dos setores privado e social dispensam a exclusividade. Por um lado, querem continuar a ter o contributo de médicos que trabalhem no SNS, por outro lado, criam incentivos para que os médicos trabalhem mais, angariem novos doentes e rentabilizem a capacidade instalada. Embora desconheçamos, com exatidão, os modelos remuneratórios, sabemos que eles são constituídos, nalguns casos apenas por uma componente variável (“fee-for-service”), noutros casos por um misto de salário e honorários, e também, nalguns casos, por uma componente fixa acrescida de prémios de desempenho.
Esta panóplia de soluções remuneratórias, negociadas muitas vezes caso a caso, permitem ao setor privado ter níveis de eficiência e de rentabilidade incomparavelmente superiores ao SNS. A título de exemplo, no SNS uma sala de operações trata em média, por dia útil, menos de 3 doentes, enquanto no setor privado esse valor salta para 8 doentes. Não é uma questão de boa ou má gestão. É o resultado dos serviços públicos não disporem do trabalho médico de acordo com os horários disponíveis para a atividade operatória, antes em função dos seus compromissos externos. E como não há incentivos para que os médicos fiquem mais tempo, os resultados são desencorajadores.
As propostas de retoma da exclusividade parecem-me, assim, ser manifestamente insuficientes, se não envolverem os médicos na promoção da produtividade do seu trabalho, na avaliação dos seus resultados clínicos, e na rentabilização de instalações e equipamentos especiais e onerosos. O simples ajustamento de horários, acrescentado do rótulo “em exclusividade”, não determina maior eficiência, mais doentes tratados e melhores resultados clínicos. É imperioso que os médicos se sintam motivados e assumam responsabilidades em sintonia com as administrações: reduzir listas de espera, promover o acesso e a criação de valor para os doentes, aumentar a eficiência técnica dos seus atos e reduzir custos. Os médicos não podem estar dissociados destes objetivos mais gerais e de interesse público, sob pena de assistirmos a um divórcio cada vez maior entre os níveis de gestão e os níveis operacionais, gerador de conflitos e incompreensões que a ninguém beneficiam.
É por isso que não concordo com as propostas daqueles partidos quanto à exclusividade. Diga-se, aliás, que o aplauso aparente dos sindicatos médicos têm uma condição desde logo inaceitável. Pretendem que a exclusividade seja uma opção voluntária dos médicos, como se o serviço público de saúde não tivesse que obedecer a prioridades. A opção pela exclusividade deverá ser, antes de mais, uma decisão das administrações e das direções clínicas, de acordo com o perfil dos médicos e as necessidades dos serviços, mediante convite. Deixar essa decisão ao livre arbítrio de cada um deixará os serviços reféns de decisões que podem não corresponder ao desígnio estratégico dos serviços e à política geral de saúde. Por outro lado, deverá ser acompanhada por um modelo de incentivos individuais e de grupo que orientem os profissionais para um exercício que corresponda aos valores e objetivos dos serviços, dando assim consistência e robustez aos desígnios pretendidos.
O atual governo já em diferentes situações se referiu à “dedicação plena” dos médicos mas tem fugido – e a meu ver bem – do conceito de exclusividade, entendido como um “posto”, com toda a carga burocrática e remuneratória que isso envolve. A dedicação plena ganha-se com políticas remuneratórias inovadoras em que a remuneração passa a ser variável, não porque se fazem mais ou menos horas extraordinárias, antes porque se motivam os profissionais a dedicar-se mais e por mais tempo aos seus serviços, contra uma remuneração acrescida. E isso terá que refletir-se, em mais doentes tratados, mais consultas realizadas, mais doentes intervencionados, mais visitas domiciliárias, numa palavra mais acesso a cuidados de saúde, nos hospitais e nos centros de saúde.
Temos que pagar mais e melhor (leia-se com novas regras) aos nossos médicos se queremos promover a equidade no acesso a cuidados de saúde.