Escrever sobre as eleições americanas enquanto decorre a votação é arriscado. Apesar das sondagens, nunca se sabe o que sairá das urnas. Sobretudo desta vez, em que tudo é diferente, nomeadamente a elevada participação prévia, por via postal e presencial, que atingiu níveis inéditos, a incerteza quanto ao que virá a acontecer em oito ou nove estados que tanto podem cair para um lado como para o outro e ainda a extrema radicalização de importantes segmentos do eleitorado. Com Donald Trump em campo, as regras e os esquemas de análise do passado ficam completamente baralhados.
Mas poderá ser menos arriscado escrever agora do que amanhã, quando se souber apenas uma parte dos resultados e não se tiver ainda concluído as contagens dos votos postais. Salvo milagre, e eles por vezes acontecem, amanhã começa a confusão. Na verdade, receio que no rescaldo do 3 de novembro surja um período de grande pandemónio nos EUA. Se a minha previsão bater certa, entraremos numa embrulhada em que será muito difícil ter uma ideia clara sobre o futuro. Escrever sobre essa situação de caos político e social necessitará de uma clarividência que ultrapassa largamente as minhas capacidades de navegação em águas tormentosas. Quem conhece bem a sociedade americana pensa que a tempestade que se anuncia é simplesmente aterradora.
O enredo tem estado a ser preparado desde há semanas. Há um plano, nada acontece por acaso. O chefe da produção e prima-dona é Donald Trump. Como não podia deixar de ser, e é hábito, tudo gira à volta da sua megalomania, narcisismo e interesses pessoais.
A tragédia poderá desenrolar-se mais ou menos da seguinte maneira. Uma vez terminado o apuramento dos resultados do dia, de quem hoje votou presencialmente, e se estes números provisórios lhe forem favoráveis, o presidente Trump virá à televisão para se proclamar como vencedor. Dirá que os votos pelo correio, que ainda não estiverem contados, não têm validade. Estará, assim, a procurar ignorar a vontade de milhões de americanos que escolheram a via postal, mais segura nestes tempos de pandemia, para expressar a sua escolha. Essa afirmação sobre a nulidade dos votos ainda não apurados, se acontecer, será um colossal abuso de poder, uma ilegalidade e é contrária às práticas democráticas. Mas a proclamação de Trump trará de imediato para as ruas das cidades do Estados Unidos os seus apoiantes, para comemorar a falsa vitória. Mais do que comemorações extemporâneas e injustificadas, essas demonstrações de gente radicalizada e armada – este tem sido um ano recorde em termos da aquisição privada de armas de todos os calibres – servirão para intimidar o resto dos cidadãos. Não sei qual será a resposta dos democratas nem das forças de polícia. Mas não tenho dúvidas que assistiremos a numerosas confrontações. Uma antiga colega minha, uma nova-iorquina que, como eu, supervisionou a organização de várias eleições complicadas em diversas partes do mundo, dizia-me ontem que tem mais medo deste período pós-eleitoral nos EUA do que de tudo aquilo que viu nas ditaduras por onde andou.
Continuemos a trama. Nos dias seguintes, Donald Trump continuará os seus pronunciamentos contra o processo eleitoral e a não aceitar um veredicto das urnas que lhe seja desfavorável. À confusão política e social juntar-se-á então toda uma série de contestações legais, que os advogados do presidente porão em marcha um pouco por toda a parte. Entraremos então numa fase de alvoroço generalizado. Numa situação dessas e com o personagem que temos, quem acabará por se impor será Donald Trump. É verdade que as instituições de contrapeso e de equilíbrio de poderes são um garante da democracia e elas existem nos EUA. Mas é igualmente verdade que o presidente conseguiu ver confirmados, durante o seu mandato, 220 juízes federais e três para o Supremo. Esses juízes poderão desempenhar um papel fundamental no jogo jurídico que se antevê.
O cenário que aqui descrevo é obviamente pessimista. Para planear a resposta adequada, convém ser pessimista em alturas de grandes crises. Seria ótimo se não acontecesse ou que ocorresse apenas de uma forma mitigada. Gostaria imenso de estar errado. Mas ao ver as montras das lojas do centro de Washington ou de Nova Iorque a serem protegidas com tapumes fico mais convencido que há razões para temer e estar preparado para o pior.
Isso traz-me de regresso ao nosso lado do planeta. Se houver balbúrdia institucional nos EUA, as ondas de choque terão um impacto desestabilizador global. A pandemia do coronavírus já pôs uma boa parte do mundo do avesso. Um choque adicional virá complicar ainda mais a cena internacional. Estamos nós, aqui na Europa, preparados para responder a uma possível gravíssima crise política americana?
Se o cenário que acima descrevo ocorrer, iremos assistir a uma intensa pressão diplomática dos representantes de Donald Trump junto das capitais europeias. Tudo farão para que a pretensa vitória seja reconhecida. Precisarão de mostrar ao povo americano que os dirigentes europeus reconhecem a vitória do seu chefe. É uma maneira de acrescentar legitimidade à pretensão. Nestas ocasiões, quando as eleições são livres e aceitáveis, os chefes de Estado têm a obrigação protocolar de enviar as suas felicitações ao candidato vencedor. Veremos quem o fará, no universo da União Europeia. Neste momento, do total de vinte e sete estados-membros, conto entre sete e nove líderes que, se pudessem, votariam Trump. Que posição irão tomar, em caso de barafunda eleitoral? E qual será a posição de Charles Michel? Que tipo de relações se podem esperar entre os dois lados do Atlântico, num segundo mandato que viesse a ser manchado por uma legitimidade marcadamente duvidosa? Estas perguntas dão pano para muitas mangas. Oxalá não seja necessário voltar a elas dentro de algum tempo.
Entretanto, para além da posição europeia, também me preocupa o impacto de uma crise desse tipo sobre o futuro das Nações Unidas e do sistema multilateral. Tal como os líderes europeus, António Guterres também estará sob pressão. Que mensagem de felicitações poderá enviar a um presidente, se ele emergir da confusão, do abuso do poder institucional e dos jogos jurídicos?
Nestes tempos tão únicos, não há dúvida que a melhor solução é uma vitória nítida, sem espinhas, e já hoje inequivocamente expressa, de Joe Biden.