De mãos dadas, andam lado
a lado desde sempre, mas foi este vírus malvado que aí anda que as colocou na
boca do mundo. A loucura e a doença mental estão na ordem do dia e avolumam-se
enquanto efeitos colaterais dos tempos pandémicos que vivemos. É preciso não
esquecer a saúde mental.
Há muito tempo que estes conceitos entraram, definitivamente, na minha vida.
Não pedi, mas eles chegaram sem pedir licença, no dia em que dei por mim a
acompanhar um caso de psicose esquizoafetiva de alguém que, muito
corajosamente, veio a enfrentar quatro internamentos psiquiátricos.
Estava muito longe de imaginar toda a dimensão do que viria a presenciar num
serviço de psiquiatria. Distúrbios alimentares… eu nunca tinha visto magrezas
assim. Que noção teriam aquelas jovens ao olhar-se ao espelho? Mal eu sabia que
“o namorado a violou e a família a acusava de ser culpada”. O quê? Um
murro no estômago.
Este choque de realidade
empurrou-me para um périplo de descoberta em torno da mente humana. Um grande
ponto de interrogação abria-se no meu cérebro para, tantas e tantas vezes, dar
lugar a perguntas como: o que é a loucura? Como é que lá se chega? Quem são os
loucos?
Queria saber mais sobre este grupo de doenças associado à loucura, cujo
cardápio não se fica pelos distúrbios alimentares. É extenso e complexo, com
transtornos obsessivo compulsivos, esquizofrenias, psicoses variadas,
bipolaridade a integrarem a lista, entre outras doenças, que certamente escapam
ao meu conhecimento.
Determinada neste meu percurso de investigação, desemboquei um dia no Centro
Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, mais conhecido como “Júlio de
Matos”, “Hospital dos Malucos”… “Manicómio”, para
assistir a uma peça de teatro imersivo.
Em “Alice, o Outro Lado da História”, somos levados por toda uma
outra perspectiva do conto infantil “Alice no País das Maravilhas” e
do seu autor, Lewis Carrol. Parece que na realidade este senhor tinha
comportamentos duvidosos com crianças. Alice, com apenas 10 anos de idade, terá
sido uma criança com quem manteve um caso amoroso. Outro murro no estômago.
A verdade desta história terá ficado em 1800 e pouco se poderá provar. Restam
as fotos tiradas a crianças, nuas, Alice entre elas, por Lewis Carrol para nos
fazer pensar e lançar a dúvida. No final a mesma pergunta: afinal quem é o
louco aqui? Alice, que, incompreendida, acabou no hospício, lá colocada pela
família, ou, Lewis Carrol o adulto que a assediou?
Fiz o meu julgamento, enquanto elemento daquele tribunal de que todos os que
assistiam à peça faziam parte, e fui reparando também no edifício que fazia
parte do cenário. Vindo de outro século remetia-me para tratamentos com choques
elétricos, pessoas amarradas em coletes de forças e gritos infindáveis. Que
violência para com quem já tanto sofria.
A série “Freud” escrutina também esta incompreensão da sociedade para
lidar com o então desconhecido. Incompreendida, a loucura era tratada com
verdadeira tortura física. Ainda bem que Freud nasceu e louvada seja a sua
loucura de ter insistido na psicanálise.
De incompreensão em incompreensão, evoluímos, o termo loucura dá cada vez mais
lugar a doença mental, mas ainda é um estigma para todos aqueles que a vivem,
que acumulam o sofrimento da condição com memórias, que, consciente ou
inconscientemente, escondem verdades hediondas só para si.
Ao longo dos anos, assisti ao desalento de quem entra pela primeira vez num
serviço de psiquiatria para dar acompanhamento aos seus, com as perguntas “como”
e “porquê” estampadas no olhar. Vi maridos, mulheres, pais, mães,
irmãos e amigos. Vi pessoas de todas as idades e estratos sociais. A loucura é
como o COVID, não escolhe a quem atacar.
Com os pacientes aprendi e cresci. Não consigo chamá-los de loucos. Loucos são
os que lhes infligem tamanhos sofrimentos. Loucos ficam quando o mundo lhes
vira as costas. E se loucos são, é por loucura ser a verdade do seu mundo.