Qualquer pessoa de boa-fé reconhece a existência de um racismo estrutural na sociedade portuguesa. Negá-lo é pretender negar uma evidência. Por que razão um homem branco de 70 anos, se falar com um outro homem branco, de 40 anos, o trata por você, mas se se dirigir a um negro da mesma idade já o trata por tu?
Por que razão não vemos mais deputados não caucasianos na Assembleia da República? Por que razão se ouvem populares a chamar monhé ao primeiro-ministro, em nome da sua cor de pele e origem goesa? Por acaso sabem esses ignorantes que o termo, apesar de utilizado em tom pejorativo,vem do suaíli e significa “dono” ou “senhor”? Muitos não sabem, mas dez por cento da população de Lisboa nos séculos XVI e XVII era africana, o dobro da percentagem actual.
No início do século XX realizaram-se zoos humanos em Portugal e na Europa, onde as potências coloniais exibiam alguns espécimes humanos, incluindo crianças, trazidos propositadamente de diferentes tribos e regiões africanas, com o seu folclore, indumentárias e artesanato, a fim de apresentar ao homem branco um pedaço de exotismo. Mas, pelo menos no caso da Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934) os indígenas foram explorados, e quando regressaram às suas terras foram alvo de chacota dos conterrâneos por irem de mãos a abanar.
Depois vieram as guerras coloniais e o exacerbar do racismo, pois o exército colonial estava a lutar contra os turras, forma popular de dizer “os pretos”, esquecendo-nos que existiam soldados negros, nativos, integrados nas forças armadas, numa altura em que se clamava que África era terra portuguesa, mas quando toda a Europa já se tinha retirado de além-mar e reconhecido o direito à autodeterminação dos povos africanos.
Mais tarde veio o trauma da descolonização e a revolta dos colonos instalados que queriam uma independência branca, ao estilo da Rodésia, em Angola e Moçambique. Afinal tiveram que perder os seus bens imóveis e deixá-los aos angolanos e moçambicanos e sofrer o trauma de ter de recomeçar a vida do zero, numa metrópole em certos aspectos muito mais atrasada do que em cidades como Luanda ou Lourenço Marques.
Ultimamente, com a globalização e a imigração brasileira, africana, chinesa e da Europa de Leste o racismo diversificou-se. Mas o fenómeno racista assume muitas expressões, e não se verifica apenas de brancos contra negros, mas entre negros e destes para os brancos e mulatos.
Com bem diz Luísa Semedo: “Será assim tão complexo compreender que raças biológicas não existem, que fazemos todas e todos parte da raça humana – ou outras belas frases que se queiram inventar –, mas que as raças existem enquanto construção social e política hierarquizante?” E acrescenta, em artigo de opinião no “Público”: “Não existe qualquer problema em falar de cores, tal como não há qualquer problema em dizer que um indivíduo tem os olhos castanhos e outro os olhos azuis, o problema está na construção de hierarquias entre essas cores. Se não se vê a cor, não se vê a hierarquia e não se vê o racismo, e se não se vê o racismo nada é feito para o combater. Negar o racismo é perpetuar o racismo.”
É curioso que a PSP (que conta com uns quantos simpatizantes do Chega) apressou-se a passar a ideia de que o assassínio de Bruno Candé em Moscavide não tinha motivação racista, mas a Polícia Judiciária não exclui a possibilidade, tendo em conta diversos testemunhos de quem conhecia bem o homicida.
Mesmo no campo religioso cristão o racismo esteve muito presente ao longo do séc. XX, no sul dos Estados Unidos e na África do Sul, por exemplo, apesar de constituir um pecado contra Deus e uma afronta ao ensino bíblico da imagem de Deus no ser humano. Hoje já não se diz que o negro e o índio não têm alma, mas há muito boa gente que ainda pensa neles como sendo inferiores aos brancos.
Em finais do séc. XIX o filósofo Arthur de Gobineau (1816-1882) expunha no “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, uma teoria de supremacia da raça branca, que tem permanecido mais ou menos presente desde então, seja de modo mais explícito, como o arianismo nazi, ou mais disfarçado. Ainda agora o senador republicano Tom Cotton, EUA, tido como possível candidato presidencial em 2024, sugere que a escravatura foi “um mal necessário”…
De facto, negar a existência do racismo é contribuir para a sua perpetuação. Há que mudar mentalidades, mas a dialéctica dos extremos políticos não leva a lado nenhum.