A crise pandémica e o seu impacto brutal na vida económica e social impuseram a todos, situações excecionais. Desde a privação da liberdade de circulação ao encerramento de, praticamente, todas as atividades, até às consequências trágicas para muitas famílias e à rutura dos sistemas de saúde, temos assistido de tudo em doses nunca vistas. Apenas o abastecimento de bens e serviços essenciais (e não foi coisa pouca) se foi mantendo, o que muito contribuiu para a serenidade das populações e para o acatamento sensato das medidas de confinamento.
A Europa assumiu-se finalmente como União, consciencializando-se do grande desafio que a devastação na saúde e a recessão económica, o desemprego e a pobreza, nos colocam a todos (aos ricos, aos frugais e aos periféricos). Por isso estamos confrontados com uma enorme torneira de onde vão jorrar milhões de euros de 2021 a 2029. Esperemos que o destino destas verbas não seja um quebra – cabeças para os decisores políticos, uma oportunidade para os caça-fundos, um fator de polémica entre Estado e setor privado, um ponto- chave na agenda da disputa política. Porque se assim for, sobrará pouco espaço para utilizar estas verbas com racionalidade e para relançar, com serenidade, os alicerces do nosso futuro coletivo.
Portugal tem sido, infelizmente, um exemplo pouco recomendável na utilização de fundos comunitários. Reza a história um conjunto vasto de opções erradas, formação a rodos para tudo e para nada, muito cimento armado e pouco desenvolvimento, muito para os de sempre e pouco para os cidadãos normais. Serviços públicos modernizados, nova produção nacional, educação consistente e acesso à cultura, apoio aos mais carenciados e mais velhos, têm estado fora dos programas de utilização de fundos comunitários. Tudo isto passa por uma visão integrada do país, das suas necessidades e de um equilíbrio sociodemográfico que tarda em desenvolver-se.
A escolha de um outsider com o perfil de António Costa e Silva para se encarregar de elaborar uma proposta geral para a estratégia do país num momento único e de grande responsabilidade, pareceu-me, assim, feliz e acertada. Tem visão, é arejado, não parece enfeudado a grupos de interesses, na energia ou na ideologia, tem experiência ao mais alto nível de decisão e, sobretudo, boas ideias. Fiz uma leitura apressada da sua proposta e parece confirmar-se a justeza das minhas expetativas. As ideias, muitas delas já antigas, são claras e apontam caminhos que se tornarão irreversíveis.
Percebo que Costa e Silva não domine com a mesma profundidade todos os dossiês e por isso espero que o Governo o ajude a desenvolver um pouco mais o tema da Saúde.
Há duas grandes perspetivas quando falamos da Saúde: a) a função prestadora ou assistencial; b) a função económica. Na primeira encaramo-la como o setor que responde às necessidades de saúde das populações, com eficiência e equidade, mas também respeitando a dignidade das pessoas e as suas expetativas quanto ao serviço, ao conforto e à qualidade. Na segunda, vemos a Saúde como âncora do progresso económico, que cria riqueza, distribui rendimentos e pode contribuir positivamente para a nossa balança exportadora. Na primeira vemos a saúde como despesa, mas essencial, como a pandemia nos mostrou exemplarmente.
Na segunda encaramo-la como fonte de receita, como mais uma fileira que pode contribuir para o PIB e para o equilíbrio das contas externas. Costa e Silva fala, a propósito de Portugal, como “fábrica europeia” na produção de biotecnologia, equipamentos de diagnóstico e de segurança, medicamentos, etc. Seriamos um cluster de referência a nível europeu e mundial, com “know how”, qualidade e inovação, em áreas particularmente sensíveis nos tempos que vivemos, com populações cada vez mais envelhecidas, isoladas e portadoras de doenças crónicas.
As duas perspetivas são compagináveis, mas não consigo ver a segunda sem a consolidação da primeira. Ou seja, não gostaria de ver o desenvolvimento tecnológico da saúde do meu país virado para o mercado externo, com serviços públicos modestos, doentes em listas de espera intermináveis e sem acesso, afinal, aos avanços que nós próprios produzimos.
Por isso me debruço um pouco mais sobre a vertente da prestação de cuidados, onde penso haver muito a fazer no sentido da reforma do nosso SNS ou, se quisermos, do nosso sistema de saúde.
Há sobre esta matéria duas visões recorrentes. A que nos fala na necessidade de investimento público em tecnologia, novos hospitais, novos centros de saúde e, sobretudo, em mais recursos humanos e outra, caraterizada por ver a Saúde de uma forma mais ampla, em que o Estado é responsável pelos custos, mas pode e deve deixar à iniciativa privada substitui-lo na esfera da prestação. O argumento aqui é muito simples: o privado faz melhor, com menos burocracia, melhores tempos de resposta, menos custos de contexto e mais barato…Esta narrativa, globalmente ilusória, pode ter alguma validade em contextos muito específicos e quem defende os serviços públicos não pode, com sobranceria e fato ideológico, desvalorizar em absoluto estes argumentos.
Mas raramente se olha para as reformas da saúde pelo lado da eficiência e da efetividade, isto é, tentando perceber os pontos críticos do SNS que estrangulam a atividade, desequilibram a distribuição de recursos, mantêm inativos equipamentos e instalações que todos nós pagamos e mostram rigidez e insensibilidade perante a falta de acesso de muitos cidadãos a cuidados básicos. Ou seja, precisamos de um choque de organização e de gestão, de um novo arquétipo legislativo, mais flexível e menos burocrático. O argumento de falta de recursos é muitas vezes a capa com que protegemos interesses particulares e corporativos e com os quais sucessivos governos vão contemporizando para evitar turbulências maiores.
Penso que é chegado o tempo de convocar todos os players do setor para um debate nacional sobre quatro pontos que são, a meu ver, os fatores críticos para o sucesso de qualquer reforma:
1. Modelos de remuneração profissional;
2. Separação público – privado;
3. Modelos integrados de prestação e foco nos doentes crónicos;
4. Avaliação do desempenho e da qualidade dos serviços.
Estes quatro pontos, interligados, e cuja relevância poderemos discutir noutro momento, não devem ser “evitados” ou secundarizados, sob pena de qualquer investimento significativo ficar sempre muito aquém dos resultados desejáveis. A título de exemplo, o excesso de urgências hospitalares, que tantos encargos e desperdícios trazem ao SNS, e que Costa e Silva aflora no seu programa, não pode ser resolvido com mais horas de trabalho de urgência, novos hospitais, mais profissionais escalados e menos tempo para o trabalho programado. As respostas dos cuidados de saúde primários são aqui importantes, têm que ser inovadoras, com mais disponibilidade, mais acesso e mais competência e reconhecimento por parte dos utentes.
O pedido insistente de mais dinheiro para a saúde faz, indubitavelmente, sentido para investimentos na substituição de alguns hospitais, numa rede nacional, no essencial boa e modernizada. E passo a explicitar: os velhos Hospitais Civis de Lisboa, Évora, Oeste (Torres Vedras, Peniche e Caldas da Rainha) e Algarve, aonde um investimento numa nova estrutura exige uma decisão prévia sobre uma nova visão para a Saúde da Região. Estes investimentos devem ser desenvolvidos em simultâneo com a renovação de instalações degradadas e uma revisão do mapa hospitalar, já que as fusões a que assistimos nas duas últimas décadas, não provaram ter o sucesso que se propagandeava, deixando muitos portugueses mais longe do acesso a cuidados de saúde e não acrescentando nada em matéria de eficiência.
Não posso deixar de referir que mais investimento em equipamentos e pessoas pressupõe uma atenção séria para a sua rentabilização. Não é aceitável termos salas de operações, equipamentos sofisticados de diagnóstico e instalações técnicas especiais, para depois estarem subutilizadas e os doentes serem, cortesmente, encaminhados para o setor privado. Se se conclui que o privado, em certos domínios e nichos de mercado, faz melhor e é mais acessível para os doentes, tome-se a decisão de investir menos em infraestruturas e equipamentos nessas áreas e concessione-se ao setor privado, como já acontece na hemodiálise e de certo modo nas análises clínicas e na imagiologia. Mas se assim for, reforcem-se os mecanismos de supervisão e controlo, para evitar fraudes, abusos e rendas garantidas à custa do erário público. Aumentar despesa dos dois lados é que não, porque isso alimenta a ineficiência do SNS e alimenta, sem justificação, as rendas do setor privado. E gasta-se o dobro…
Nos cuidados primários, teremos que apontar novos desafios aos profissionais, aproximá-los dos cidadãos, quer melhorando o seu estatuto, quer admitindo novas responsabilidades e autonomia na gestão dos seus utentes, quer criando modelos de integração com os especialistas dos hospitais. A plena disponibilidade destes profissionais para com os seus inscritos é uma condição “sine qua non” para que o conceito de médico de família deixe de ser apenas uma figura de estilo. A atualização permanente dos inscritos ativos é uma questão elementar de ética e seriedade de processos. A possibilidade dos médicos de família poderem trabalhar individualmente, a partir dos seus consultórios, mas visitando os seus doentes em casa ou nos lares, em rede com os hospitais e os cuidados continuados integrados, deve ser explorada. Os resultados dos modelos USF estão, até agora, muito aquém do desejável e implicaram aumentos significativos da despesa pública.
Uma palavra para a importância do digital na área da saúde. São muitas e justas as críticas à falta de estratégia, de organização e de uniformidade nas redes de informação da saúde. As falhas são constantes, o trabalho exasperante dos médicos, enfermeiros e administrativos na lide diária com os sistemas de informação é conhecido. O SNS não dispõe, ainda hoje, de um sistema de informação integrado e nacional sobre os doentes, o que motiva muitas vezes a repetição de exames, atrasa diagnósticos e tratamentos e o torna vulnerável a todo o tipo de abusos. É uma área essencial a merecer uma séria reflexão e um investimento estratégico.
Aguardemos o futuro próximo com algum otimismo, esperando que os milhões que venham para a saúde sejam bem aplicados e que criem valor para os portugueses. E, sobretudo, esperemos que os governos – este e os próximos – não se deixem capturar pelos interesses corporativos ou pelo dogmatismo ideológico. Isso seria catastrófico.