1.Com o desconfinamento seria expectável que os novos casos aumentassem. Isso mesmo foi repetidamente dito pelas autoridades que, todavia, não referiram qual seria a fasquia a partir da qual voltaríamos a confinar. Logos se veria…. E viu-se, não no recrudescimento generalizado de novos casos, mas num foco persistente e ativo nalguns concelhos da Região de Lisboa (Sintra, Amadora, Loures, Odivelas e algumas freguesias bem delimitadas na cidade de Lisboa). Mas em vez de um novo confinamento, que ninguém sugeriu, assistimos a um rol de acusações e de desentendimentos, técnicos e políticos. Tudo isto num contexto internacional em que fomos fortemente penalizados por este surto da Região de Lisboa.
2.As reuniões do Infarmed, um bom e exclusivo exemplo português de partilha de informação e de conhecimento, entre políticos, empresários, autoridades de saúde, profissionais e especialistas, foram suspensas sem nova data, porque parece ter chegado ao fim o seu interesse, pelo menos no modelo seguido. Na penúltima reunião, foram visíveis, segundo alguns testemunhos, os sinais de exasperação e de disputa entre vários dos intervenientes, ao ponto do encontro ter sido interrompido abruptamente. Na última reunião, só depois de terminada é que os participantes perceberam que tinha sido mesmo a última…
3.Tivemos um forte surto de COVID num lar de Reguengos de Monsaraz, nas últimas semanas, que parece estar agora controlado. Foram 169 casos, 131 ainda ativos (85 no lar e 46 na comunidade), com o infeliz desenlace de 16 óbitos e 9 hospitalizados, 5 dos quais em cuidados intensivos. Todas as autoridades se empenharam em dar uma resposta enérgica e rápida ao sucedido, com bons resultados. Mas há lições e desentendimentos que não devem ser esquecidos. Os lares não são estabelecimentos de saúde, mas devem ter um permanente acompanhamento em cuidados de saúde por parte dos serviços públicos (ACES, Hospital e Saúde Pública), como bem determinou a Ministra da Saúde no seu Despacho de 24 de abril passado (Despacho nº4959/2020). Os sindicatos médicos e a Ordem dos Médicos desentenderam-se com o presidente da ARS do Alentejo, afirmando que estes profissionais se deviam recusar prestar assistência a lares…ainda por cima fora dos seus concelhos de trabalho. Tudo isso, porque o referido presidente os teria mobilizado para acompanhar os utentes do lar nesta crise e avaliar a necessidade de internamento quando necessário. Os sindicatos e a OM deram aqui uma excelente lição de solidariedade, de compaixão e de defesa do interesse público? Não, provavelmente o contrário…
4. Jaime Nina, um reputado infecciologista, atira-se descuidadamente à Ministra da Saúde: diz ser advogada e que esperaria, neste momento, outro perfil à frente da Saúde. E diz mais: para andarmos de avião precisamos de ter a certeza que o piloto tem, não só formação específica, como experiência. Pois é, confunde um avião e o seu comando com a companhia de aviação e o seu gestor. Por outro lado, esquece-se deliberadamente de mencionar que Marta Temido é licenciada em Direito, mas não advogada, tem formação pós-graduada em gestão hospitalar, doutoramento em Saúde e experiência que baste na gestão do Ministério da Saúde (presidente da ACSS), nos hospitais e, precisamente, no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Tanta precipitação, ocultação e nervosismo de uma pessoa que todos nos habituamos a respeitar é triste. Não pretendo defender ou comentar o desempenho da Ministra da Saúde. Apenas comento a forma capciosa e limitada como é referida. Andamos todos a tentar acertar no alvo mas muitas vezes erramos clamorosamente.
Estes episódios são reveladores de algum cansaço por parte dos principais protagonistas aos diferentes níveis de intervenção – político, técnico e operacional. Os políticos querem manter um equilíbrio virtuoso entre a abertura da economia e da vida social e o controlo do vírus; os especialistas percebem que as suas posições, mais académicas e rígidas, têm que dar lugar a alguma elasticidade interpretativa e condescendem, sem se comprometer, com o desconfinamento; os operacionais estão cansados e não abdicam de chamar a atenção para os novos casos, potenciadores de mais trabalho e mais preocupações. Mas quando as coisas correm mesmo mal, todos saem da órbita da responsabilidade própria, apontando o dedo aos outros. O facto de estarmos fora dos corredores turísticos de muitos países europeus, com base em critérios de circunstância e que pouco revelam sobre a forma como cada país lidou com a pandemia, agravou a excitação dos protagonistas: aonde antes se via competência e sentido de Estado, vê-se hoje falta de meios, incompetência e descoordenação.
As críticas subiram de tom e os elogios e o milagre português foram rapidamente enfiados no saco. Quem hoje se refira ainda, e com razão, aos bons resultados de Portugal é logo acusado de se ter vendido ao governo ou de procurar alguma benesse. Aqueles que propugnavam um desconfinamento a todo o vapor, porque já não havia razões para confinar, de repente, calaram-se, esperando melhores dias. É o bom estilo português na sua melhor expressão.
A situação de Lisboa remete-nos para a falta de controlo do surto. Não será fácil combater o vírus, quando as condições socioeconómicas de alguns residentes deixam muito a desejar: baixos rendimentos, precariedade de emprego, baixa escolaridade, fracas ou inexistentes condições habitacionais, desenraizamento social e cultural, higiene deficiente e alimentação escassa e desequilibrada, são um quadro de pobreza generalizada que muito aumenta o risco de contágio. Se a isto associarmos a mobilidade diária de muitas destas pessoas ficamos a perceber melhor aonde estão as portas abertas para a entrada do vírus. Combater um vírus neste cenário exige o esforço sistémico, planeado e coordenado de múltiplos atores, quando o tempo escasseia e nada estava preparado: os transportes, as equipas de contacto, a recriação das regras de habitação, as distâncias para os locais de trabalho, etc. A responsabilidade de quem está na área da saúde não é maior da que compete a outros ministérios, às políticas de emigração, de habitação, de segurança ou de transportes, às responsabilidades dos autarcas. Como a melhor defesa é o ataque, potencia- se a gritaria e os desentendimentos.
O diferendo de Reguengos de Monsaraz é mau de mais para se deixar passar sem um comentário adicional. Estou do lado do presidente da ARS do Alentejo, quando, em estado de necessidade, apelou à colaboração dos médicos e enfermeiros dos ACES e hospitais para ajudarem a controlar diariamente o surto de COVID no lar, pediu aos hospitais e ACES a sua mobilização, suspendeu férias e criou equipas de acompanhamento clinico no próprio lar, com competência para enviar doentes para internamento no Hospital de Évora. Era o que se lhe impunha em nome do interesse daquelas pessoas e do interesse público e respaldado nos exatos termos do Despacho da Ministra da Saúde, já citado. Não foi isso que entenderam os sindicatos médicos e a sua Ordem, pedindo de imediato a sua demissão. E porquê? Porque o lar não é um sítio recomendável para médicos, fica fora do concelho aonde os especialistas hospitalares trabalham (a menos de 20 minutos de caminho) e estes não podem ser privados das suas férias programadas e já trabalham mais de 80 horas por semana. Lê-se e não se acredita em tanta insensibilidade, incongruência e crueldade. Quem manda afinal na Saúde, as Autoridades legitimamente investidas ou a Ordem dos médicos e os seus sindicatos? Ainda não sabemos.
