Aos 5 anos guardava ovelhas por esses campos fora com uma côdea de pão para comer o dia inteiro. A fome era “tanta, tanta”, que chorava. Foi à escola, mas ia “descalço e em mangas de camisa”. Demorei muito tempo a perceber o que a expressão “mangas de camisa” do meu pai queria dizer e, na minha cabeça de criança, o caminho até àquela que foi a sua escola primária parecia-me infinito feito de carro e em estrada de alcatrão, quanto mais a pé, descalço e sobre pedra. No Google, são 6 quilómetros.
Cheguei a duvidar do meu pai que acrescentava a cada memória “fizesse chuva ou sol”. Portugal vivia em ditadura, analfabeto e mergulhado em profunda pobreza. Os meus avós saberiam apenas juntar as letras do nome, se tanto. “A sardinha era para quatro” acrescentava a minha mãe. Aprender a ler e a escrever era mesmo importante, “fizesse chuva ou sol”. Portugal avançou, deixou de ser um país de analfabetos, abriu-se ao mundo em liberdade e o progresso chegou. Primeiro os herbicidas. “Matavam tudo o que estava à volta e secavam a terra”. O meu pai não gostava. Depois a autoestrada chegou à aldeia. E o meu pai pensativo. O telemóvel apareceu e “qualquer dia falam sozinhos na rua”, ria-se, como se fosse impossível. A internet então, bom, nunca chegará a tê-la entendido. Eu também não lha sabia explicar. Para tudo isto, num olhar entre a perplexidade e a admiração que os acontecimentos lhe causavam, ocorria-lhe, não raras vezes, repetir uma frase que vinha sendo perpetuada de geração em geração: “a 2000 chegarás, de 2000 não passarás”. O meu pai já não vive. E deixou-nos muito antes de morrer. Os Corpos de Lewy, essa terrível doença, invadiram-lhe o cérebro e o mundo era um lugar cada vez mais estranho e muito veloz. Nunca chegou a usar o telemóvel. Pai, chegámos a 2020. Falamos sozinhos rua. Chama-se sem fios. Mas há mais, muito mais. A velocidade dos acontecimentos é de tal forma estonteante que, pai, às vezes temo não consiguir acompanhar. Há um senhor que vive nos EUA a dizer que vamos conduzir carros debaixo de terra e eu já nem me atrevo a dizer que não. Chama-se Elon Musk, produz carros alimentados a electricidade que não precisam da condução humana. Usam o GPS, uma nova tecnologia. Estes, sim, pai, “travam com o pensamento”. A 3ª Guerra Mundial não se deu, mas nem por isso o mundo deixou de estar em conflito permanente.
Deu-se uma Primavera Árabe. A Síria está em guerra. A Europa tem à porta um campo de refugiados, de que não há memória. Milhares naufragam no Mediterrâneo a tentar chegar às nossas margens. Muitos não os entendem, têm medo, não os querem receber e erguem-lhes muros. Estão só a fugir da fome, “tanta, tanta”, e da morte certa, pai. A agricultura está cada vez mais difícil. Há lixo a orbitar em volta da Terra. E agora um vírus atingiu-nos a todos, fechou-nos em casa, limita-nos os abraços, tapa-nos a boca. Chama-se distanciamento social. Não fora o progresso trazido pela inovação, seria bem pior. Até a mãe já diz que quer um smartphone para fazer videochamadas. Por esse mundo fora, há crianças que continuam a dar tudo por tudo para chegar à escola, faça chuva ou faça sol. Vivem nos países a que chamamos de subdesenvolvidos. Valorizam a educação e os idosos são “seres grandes”, em sinal de respeito. Têm princípios. Aqui no primeiro mundo, muitos não se lembram do que foi Portugal e o mundo no século XX. Às vezes parece que aprender a ler e escrever, com 12 anos de ensino gratuito, não adiantou muito. As pessoas não estão melhores. Odeiam o outro só porque sim. Só porque não têm a mesma cor, os mesmos credos, as mesmas tradições, as mesmas opiniões. Têm escolaridade, mas faltam valores. São iletrados e sofrem de uma pobreza, a de espírito, que infelizmente não faz chorar de fome. Há políticos que não olham ao que dizem para governar. Socorrem-se de subterfúgios como manobra de distração para não discutir o que realmente interessa. Chamam-se Fake News. E o povo, que sabe ler, mas evita pensar, cai na esparrela.
É como diz a música, “so much trouble in the world”. Talvez por isso e por considerar que o nosso planeta não tem solução, o Elon Musk, o tal senhor que vive nos EUA, queira colonizar Marte com humanos. Mas, pai, a vista aqui de baixo é tão bonita. O Sol continua a nascer e a pôr-se, a cada dia que passa aquece e ilumina a todos sem olhar a quem. “O céu pedrento ou chuva ou vento” ainda funciona. A Lua, essa, está cada vez mais poética. E as Três Marias ainda brilham no céu. Eu continuo a olhar muitas vezes para cima, muitas vezes emocionada com toda esta beleza, com a bondade que ainda corre na veia humana, com o progresso em forma de inovação que suaviza distâncias. E, sim, a acreditar, mesmo muito, na educação que ensina a ler e a pensar.
Chama-se Esperança.
*Sara Filipe é Gestora de Comunicação