Há quase vinte e dois anos, em Estocolmo, José Saramago afirmava perante os académicos suecos que, quando aceitámos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em meados do século passado, não reparámos que os direitos não podem subsistir «sem a simetria dos deveres que lhes correspondem». Era a noite de atribuição do Prémio Nobel de Literatura e, pela primeira vez, um escritor de língua portuguesa era o distinguido.
Naquele dia 10 de dezembro de 1998, assinalavam-se também exatos cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e muito se comemorava a efeméride, mas José Saramago fez questão de sabiamente lembrar que “a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios”. Isso havia acontecido, em grande medida, nos cinquenta anos anteriores e, se nada se fizesse, sucederia também, muito provavelmente, nos cinquenta que se lhes seguiriam. Depois de receber o prémio, Saramago esteve entre nós mais doze anos e não viu a situação alterar-se; outros dez se passaram desde que morreu e, se cá tivesse permanecido, não me parece também que tivesse conseguido descortinar, não obstante o seu brilhantismo, mudanças que os que cá ficaram não viram em matéria de direitos humanos.
Felizmente, tal como a obra do escritor para fruição dos leitores, as ideias e as palavras do homem no que toca a direitos humanos não se perderam. Em entrevista à VISÃO, Pilar del Río disse que os dez anos sem Saramago foram, na verdade, dez anos com Saramago, ainda que vividos de outra maneira. Não a posso contrariar. E, de facto, ficou-nos a obra, como é usança dizer-se sempre que se fala da morte de um escritor, ainda por cima uma obra extraordinária – e os livros, felizmente, continuam aí para quem os quiser ler e reler. Também não é mentira dizer, retomando a ideia de que sobreviveu mais do que a obra, que a fundação que enverga o seu nome tem trabalhado bem nos demais domínios em que Saramago se expressava publicamente. Como diz Pilar, Saramago não se dedicava ao supérfluo. Habituámo-nos a lê-lo a propósito da ética e dos direitos humanos, preocupações que inscreveu naquele notável discurso de Estocolmo e às quais a Fundação José Saramago, com a colaboração da Universidade Autónoma do México (país em que Saramago é, dizem-me, mais amado do que cá), deu nova vida através de uma Carta Universal dos Deveres e Obrigações dos Seres Humanos.
Num momento como o que vivemos, em que felizmente se sucedem manifestações antirracismo, e em que o jornalismo cidadão mostrou ao mundo o que os média e as redes sociais depois difundiram massivamente, é assaz pertinente – é, aliás, importante – sugerir a leitura da carta proposta pela Fundação a partir daquelas ideias lançadas por José Saramago em 1998. São vinte e três pontos (atente-se especialmente no terceiro) que convidam à reflexão, ao debate e à ação – ou, como o próprio escritor português disse em Estocolmo, no banquete de atribuição do Prémio Nobel de Literatura, a tomar a palavra e a iniciativa. Ler a carta, que está disponível no site da fundação, pode ser um bom princípio. E uma outra forma de lembrar, agradecendo-lhe, José Saramago. Nunca será de mais lembrá-lo, seja no México, em Estocolmo, ou nestas linhas.
Neste 18 de junho, faz dez anos que Saramago morreu. Neste 18 de junho, ao meio dia, na fundação que tem o seu nome, sem público que não a oliveira cujas raízes guardam as cinzas do escritor ali depositadas há nove anos por uma viúva vestida de branco, vai tocar-se música. Pilar del Río sugere que cada um entenda o momento como quiser. É essa uma homenagem bela, tal como a das flores frescas que, como sempre desde que partiu, estarão sobre a sua mesa de escrita.