Com o início do desconfinamento e a sensível redução do impacto da COVID nos hospitais, o governo e as administrações voltam-se, agora, para a retoma da atividade normal dos serviços.
Há muitos doentes que ficaram para trás, nas suas consultas, nas suas cirurgias, nos seus tratamentos, etc., alguns deles com quadros clínicos a inspirar cuidados redobrados. Há doentes internados ex – COVID, para os quais os hospitais não conseguem encontrar alojamento adequado e vão ficando hospitalizados, correndo riscos de novas infeccões. As urgências irão naturalmente voltar a subir, depois de um interregno que reduziu mais de 50% da sua afluência.
O novo vírus criou novos cenários e novas exigências ao trabalho hospitalar. O reforço dos cuidados de higiene e de proteção de profissionais e de doentes, os novos circuitos que foram introduzidos, o incremento de pessoal e de equipamentos de ventilação, o apetrechamento de novas camas para receberem doentes críticos, os novos modelos de trabalho médico, com escalas que permitem a presença constante destes profissionais à cabeceira dos doentes nas 24h do dia, as consultas não presenciais, que aumentaram significativamente, são exemplos das alterações a que os serviços clínicos se tiveram que moldar, num trabalho conjunto com as administrações, a DGS e o ministério da saúde. Muitas destas mudanças deveriam perdurar no futuro.
De facto, esta crise pandémica teve a irónica virtude de obrigar os hospitais a reorganizar a sua estrutura de prestação de cuidados, nalguns domínios, no bom sentido:
1. O trabalho médico foi concentrado na COVID -19, exigindo a polivalência dos serviços das áreas médicas e a criação de uma nova dinâmica de trabalho, com desfasamento de horários, rotação de equipas e resposta médica permanente no regime de internamento. Isso não faz parte da prática médica normal dos nossos hospitais, com regimes de trabalho concentrados de manhã e as tardes, quase sem atividade programada, em regime de urgência interna e com baixa densidade de presença médica. Seria bom que no novo normal não se perdesse este lastro inovador. Mas temos muitas dúvidas que assim venha a suceder;
2. As urgências reduziram-se para menos de metade e, consequentemente, o número de doentes internados por essa via (refira-se que o internamento em serviços de medicina interna é, praticamente, em 100% dos casos, proveniente das urgências). Em 2019, nos meses de março a maio, registaram-se mais de 1,5 milhões de atendimentos de urgência, com uma taxa de internamento sempre superior a 8%. Isso representou um número diário de doentes internados próximo dos 1400, a grande maioria em serviços de medicina interna e especialidades médicas. A descida brusca de doentes em serviços de urgência, na ordem dos 50%, diminuiu o internamento hospitalar diário, em cerca de 700 doentes. No pico de internamentos diários por COVID, no fim de março, princípios de abril, tivemos um dia com 316 novos internamentos (2 de abril), um com 99 novos doentes (1 de abril) um com 85 doentes (30 de março) e, mais tarde, em 7 de abril, com cerca de 80 novos doentes e, 16 de abril, com 102 novos internamentos. Como se percebe, muito àquem da capacidade instalada e da prática anterior à COVID. Sabemos que houve doentes que evitaram, por medo, ir às urgências e, em determinadas circunstâncias, isso poderá ter sido prejudicial para a sua saúde. Mas, tendo em conta que mais de 40% da procura não necessitaria de ir a uma urgência hospitalar, seria bom que no futuro esta descida das urgências se consolidasse. Um novo normal que representaria a possibilidade de reorientar os recursos hospitalares para um trabalho mais profícuo e programado o que, já agora, exigiria melhor resposta dos cuidados de saúde primários. Será que conseguimos?
3. Vamos retomar as consultas externas a todo o vapor. Mas com duas inovações importantes. Por um lado, a possibilidade de, principalmente em consultas de controlo e seguimento, se utilizar a teleconsulta, o que vai diminuir o esforço de deslocação dos doentes e a sua concentração nas salas de espera. Por outro lado, a marcação da consulta para uma hora certa que deverá ser para cumprir, pois só assim se evitarão grandes aglomerados de pessoas nos corredores e salas de espera e se protegerão melhor profissionais e doentes. Pode ser que, finalmente, todos assumam com rigor o princípio da pontualidade que tanto contribui para a tranquilidade dos serviços ambulatórios e para a previsibilidade, privacidade e conforto dos utentes. Os horários das consultas serão alargados até ao fim da tarde, incluindo os sábados, o que pressupõe a colaboração dos médicos, dos enfermeiros, dos assistentes técnicos e dos assistentes operacionais, entre outros. Avizinha-se, assim, um novo desafio ao SNS, não para aumentar pessoal ou equipamentos, mas tão só para reorganizar os serviços, os horários e os modelos de remuneração. Até porque as listas de espera já vinham de trás. Parece fácil, mas não é…
4. As cirurgias programadas serão também retomadas. Espera-se um reforço da cirurgia ambulatória e uma maior utilização das salas de operações. Em 2019, a capacidade instalada dos blocos operatórios foi utilizada em apenas 50%, de acordo com os dados finais do ano disponibilizados pela ACSS. Temos, assim, condições técnicas e estruturais para recuperar as listas de espera cirúrgicas. O alargamento generalizado dos períodos operatórios até ao final do dia, e não só até à uma da tarde, é absolutamente crítico. Falta-nos, mais uma vez, a colaboração dos profissionais, na definição de modelos remuneratórios que incentivem o seu trabalho e na aprovação de novos horários que os mobilizem. Também não será fácil, mas é indispensável.
5. Os mais idosos são um grupo de risco elevado, como se percebeu nesta pandemia. A integração de cuidados entre hospitais, cuidados de saúde primários, cuidados continuados e residências seniores, como lares e casas de repouso, é crucial, para prevenirmos situações agudas de doença em pessoas com multipatologia. Só assim conseguiremos reduzir o internamento destes doentes, evitar os quadros clínicos de desnutrição e desidratação, tão frequentes na procura de urgência hospitalar, e as infeções nosocomiais, infelizmente frequentes e com elevada letalidade. As recorrências aos hospitais por infeções respiratórias e urinárias, hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, diabetes,etc., poderão ser substancialmente evitadas com uma política integrada que previna estas ocorrências. Será que é agora? Duvidamos…
6. Temos muitos doentes que são acompanhados em tratamento e com medicação exclusivamente hospitalar: oncológicos, auto-imunes, transplantados,etc. Com esta pandemia, percebemos que está ao nosso alcance evitar a ida frequente destes doentes aos hospitais, quer para consultas (que podem, nalguns casos, passar a ser realizadas em teleconsulta), quer para a recolha de medicamentos na farmácia hospitalar (que pode processar-se pelo correio e de forma personalizada e com georeferenciação). Está ao alcance dos hospitais reorganizarem-se neste sentido, diminuindo significativamente as deslocações de doentes com menos mobilidade, reduzindo a circulação de pessoas nos serviços e contribuindo decisivamente para a segurança e bem-estar de todos os doentes.
Aproximam-se tempos de grandes decisões no SNS. Esta pandemia, ao contrário do que muitos previam e outros desejavam, não mostrou fragilidades do SNS. Pelo contrário, os recursos foram sempre suficientes, o nível de resposta foi sempre pronto e com qualidade, a confiança dos cidadãos nos serviços públicos reforçou-se e fomos elogiados em todo o mundo. Mas houve uma atitude coletiva dos profissionais que fez a diferença, nas alterações de horários, na intensidade do trabalho, nos riscos que correram, no sacrifício da sua vida privada e familiar. Devemos aproveitar este momento para repensar estatutos e remunerações, regimes de acumulação e horários de trabalho. Os profissionais, o SNS e, sobretudo, os doentes, merecem. Não são as palmas à janela ou um prémio pecuniário isolado que resolvem esta questão. Tenhamos outra ambição para o futuro.