Algumas análises acerca do novo coronavírus são sérias e plausíveis, outras nem tanto. Vejamos algumas das teses mais frequentes.
1. A imunidade de grupo
O contacto com os milhões de vírus que pululam entre nós criam anticorpos que nos imunizam contra as suas consequências para a saúde humana. Esta é a tese essencial que exige, todavia, que 60/70% da população esteja em contacto com o vírus. Mas este volume pode aumentar riscos, designadamente de rutura nos serviços de saúde, doentes mais graves e muitos óbitos.
No caso da COVID -19, os resultados seriam exatamente os mesmos. Foi esta a teoria inicialmente adotada por alguns países, designadamente o Reino Unido e a Suécia. Os resultados não foram particularmente brilhantes, pelo menos para já. A Suécia continuou, ainda que de forma envergonhada, a manter essa estratégia, mas em ambos os países os resultados foram desastrosos. O Reino Unido é dos países com mais infetados na Europa, por milhão de habitantes, é provavelmente o que tem também mais óbitos neste momento (acima dos 35 mil) e uma taxa de letalidade elevadíssima, acima dos 14%. A Suécia foi a “ovelha ranhosa” dos países nórdicos, destoando pela maior incidência do vírus e por uma elevada taxa de letalidade (agora acima dos 12%). As autoridades suecas estão ainda renitentes em dar o braço a torcer e ensaiam agora uma nova teoria, assaz curiosa: a COVID ataca por ondas e só no fim do jogo, leia-se depois de vários surtos, é que deveremos fazer o balanço dos resultados. Estão em crer que no balanço final a incidência de infetados e as taxas de letalidade serão similares em toda a Europa. Refira-se que Portugal, com uma população um pouco superior, tem neste momento 1/3 das mortes da Suécia e menor número de infetados, num percurso em que nós conseguimos ir travando o ritmo da propagação, tínhamos inicialmente maior número de infetados e fomos apanhados e ultrapassados pelo elevado ritmo de propagação sueco.
“The Herd Immunity” parece ser, assim, uma teoria inverosímil e perigosa para combater esta pandemia. Que o diga Boris Jonhson…
2. O “vírus chinês”
Esta foi a classificação dada por Trump a certa altura da devastação provocada pelo vírus nos EUA. O argumento era simples. Imagine-se um laboratório em Wuhan, que deixa escapar um vírus aí inventado e que depois se propaga sem controlo por todo o planeta. A culpa é dos chineses.
Há aqui dois ramos que se cruzam nesta teoria. Por um lado os que querem investigar se as regras de segurança na China foram cumpridas e até que ponto o que ocorreu podia e deveria ter sido evitado. Austrália e França partilham, aqui, as mesmas dúvidas e querem o apuramento de responsabilidades. Há, depois, os que numa teoria perfeita da conspiração, atribuem aos chineses uma vontade deliberada em criar esta pandemia, para enfraquecer o ocidente e, depois, ironicamente, vender-lhes o material de proteção e os ventiladores e ainda demonstrarem um grande sentido de responsabilidade social, no apoio “desinteressado” a
vários países. É plausível que se investigue o que se passou e se peçam responsabilidades, se for o caso. É pouco verosímil a tese da conspiração.
3. A taxa de letalidade, a vacina da BCG e os fumadores
Uma das caraterísticas mais intrigantes deste vírus é o grau de virulência com que atinge os diferentes países e os diferentes continentes. Na Europa Ocidental e nos EUA de forma severa, no leste europeu e na Ásia de forma moderada a ligeira, por exemplo. Os investigadores não encontram razões evidentes que expliquem este fenómeno, dando até a ideia de que os países mais ricos e melhor apetrechados são os mais afetados.
Um estudo recente em pré-publicação parece querer fazer alguma luz sobre este tema (Squalli,J. – “Evaluating the determinants of COVID- 19 mortality: a cross- country study”,May,17,2020 – MedRxiv /BMJ). O autor analisa 140 países e a mortalidade provocada pela COVID -19. E encontra correlações significativas entre o peso da mortalidade e algumas variáveis, a saber:
a) Os gastos em saúde
Países com despesas de saúde mais elevadas per capita apresentam mais letalidade.
Razões: melhor organização dos registos e da informação, tradução mais escrutinada da realidade, mais testes e mais verdade. Aparentemente é contraditório, mas esta correlação é significativa;
b) O peso da população mais idosa
Países com uma estrutura etária mais envelhecida (peso da população com mais e 65 anos) apresentam uma correlação positiva com a mortalidade: mais envelhecidos, mais letalidade por COVID -19. Há exceções, naturalmente, que dependem do grau de intervenção dos governos, em tempo e densidade, com medidas de lock – down;
c) A obesidade
Países com taxas mais elevadas de obesidade (IMC>30) apresentam uma correlação positiva com taxas mais elevadas de letalidade por COVID -19;
d) População urbana
Países com maiores concentrações urbanas tendem a apresentar mais letalidade, porque a maior concentração determina mais propagação e mais óbitos.
Este estudo não encontrou qualquer correlação entre a toma da vacina BCG e a menor ou maior letalidade, bem assim como não encontrou qualquer relação entre a prevalência de fumadores e efeitos positivos ou negativos na letalidade.
Parecem, assim, cair por terra as teorias que associavam a BCG à menor letalidade e, a absurda, de que os fumadores estariam mais protegidos contra a COVID.
A confirmar-se, a correlação entre mais gastos em saúde e menor letalidade, deverá ser uma pré-conclusão a desenvolver, nomeadamente quanto à equidade desses gastos. O exemplo dos EUA é elucidativo: os grupos sociais mais pobres são os que sofrem mais com esta pandemia, quer na gravidade da doença, quer na mortalidade. Ficamos também a perceber, que a comparação de resultados, pode estar desde o início inquinada por um fator confusional que deriva da validade e atualização da informação partilhada. Por outro lado, as medidas de confinamento e o seu “timing”, e outras estratégias adotadas por cada país podem, refere o autor do estudo, contrariar as correlações genericamente encontradas. No nosso caso, por exemplo, a correlação entre despesas de saúde e o peso da população idosa, por um lado, e a letalidade, por outro, não se confirmam, já que em ambas as variáveis temos valores relativamente elevados no contexto mundial e apresentamos moderada a baixa letalidade.
4. As alternativas terapêuticas
O uso indiscriminado de ventiladores parece agora ser questionado por uma parte importante da comunidade científica e por muitos clínicos. A ausência de critérios apertados pode induzir a sua utilização num quadro de insuficiência respiratória moderada ou leve, tendo um efeito eventualmente contraproducente para os doentes e podendo provocar a morte. Parece haver evidência de acontecimentos fatais com este percurso.
A aposta na hidroxicloroquina e na cloroquina, medicamentos utilizados para combater a malária, não parece indicada para os doentes COVID, podendo provocar-lhes, entre outras coisas, anemia hemolítica, problemas cardíacos e a morte. Os riscos são assim muito maiores do que os eventuais benefícios, de que, aliás, não há qualquer evidência. Alguns líderes políticos estão a incentivar o uso desta terapêutica, conduzindo a óbitos evitáveis. Inaceitável e criminoso.
5. Segundas vagas
A comunidade científica parece reunir algum consenso sobre a hipótese de virmos a ter segundas e terceiras vagas COVID. Alguns atribuem-lhes níveis de agressividade mais severos e maior impacto em populações que se confinaram precocemente. Menos contacto com o vírus determinará mais dificuldades em resistir-lhe.
Outros, todavia, vêm as segundas vagas, possíveis mas mais moderadas, dado que, entretanto, se regista o enfraquecimento do vírus e da sua capacidade de contágio. A possibilidade da COVID-19 se tornar numa doença endémica e sem particular gravidade seria assim muito plausível.
6. Sucesso português? O copo meio vazio
Nas últimas semanas algumas vozes puseram em causa o “milagre” português. O argumento é simples: estamos no meio da tabela europeia no número de infetados por milhão de habitantes e as mortes têm aumentado, em número e em percentagem.
A propagação do vírus tem uma importância relativa, porque o sucesso em cada país mede-se, essencialmente, pelos impactos do vírus na vida e na saúde das pessoas, no esforço que é pedido aos serviços de saúde e na mortalidade que provoca. Ora, apesar da propagação em Portugal ter sido relativamente mais rápida do que na maioria dos países europeus, os seus efeitos foram muito menos severos nas dimensões restantes. Menos trabalho para os serviços de saúde, ausência de hospitais de campanha, muito menos doentes internados (apenas 3% dos ativos) e muito menos doentes críticos. E será bom sinalizar que Portugal é dos países do mundo que mais testa para COVID – 19 (já perto de 70 mil testes por milhão de habitantes), o que confere uma maior aproximação à realidade da pandemia.
Quanto à mortalidade, apresentamos uma das mais baixas taxas de letalidade da Europa Ocidental por COVID -19, só superada pela Áustria, Luxemburgo, Noruega e Islândia. Por outro lado, sabemos que essas taxas são substancial e uniformemente mais baixas nos países do leste europeu, fruto, provavelmente, de sistemas de informação clínica mais rudimentares ou de ações involuntárias ou deliberadas de ocultação.
Também se polemiza sobre o impacto das mortes por COVID na mortalidade geral. É fácil observar que, sensivelmente, entre 26 de março e 23 de abril, o número de óbitos em Portugal foi superior ao ocorrido, no mesmo período, nos últimos 10 anos (DGS/EVM). Esse aumento ter-se-á cifrado em cerca de 2300 óbitos, mas apenas 757 foram relacionados com a COVID, pelo que é pura manipulação tentar explicar o aumento da mortalidade geral apenas por causa do vírus. Dois terços do aumento da mortalidade tem outras causas.
Finalmente, a existência de novos óbitos, ainda que em número cada vez mais reduzido, e o ligeiro aumento da taxa de letalidade, ainda verificáveis apesar de estarmos a assistir a uma constante redução de doentes internados, explica-se pelo “delay” entre a confirmação do contágio, a manifestação da doença, o seu agravamento e o desenvolvimento das medidas terapêuticas.
Em resumo, nada belisca o sucesso de Portugal, a tranquilidade e a capacidade de resposta com que os serviços de saúde responderam e a exemplar mitigação do número de óbitos. E é mesmo assim que pensam todos os especialistas, cá dentro e lá fora. As vozes discordantes são as de sempre, as que vêm o copo sempre vazio, na vã ilusão de um dia poderem ser eles a enchê-lo. Lamentável.
7. A consagração da inimputabilidade
A condução política desta crise pandémica tem assumido aspetos caricatos em alguns países. Desde os apelos divinos para domar e afastar o mal, até à desvalorização do vírus e sua ocultação em benefício da Economia, tivemos a triste oportunidade de assistir a tudo, incrédulos e por vezes revoltados. Nunca nos esqueceremos do presidente de um país do primeiro mundo sugerindo a ingestão de desinfetante para eliminar o vírus ou de outro que, perante a morte avassaladora dos seus concidadãos, argumentava que não se podiam deixar morrer as empresas e que não era Deus para salvar vidas. A ignorância e a fé podem ser mesmo uma mistura explosiva!
Pois bem, assistimos agora à má consciência desses políticos sem estatura, quando aprovam legislação para ilibar de qualquer responsabilidade os dirigentes que, por ação ou omissão e desde que não atuassem com dolo, possam vir a ser confrontados, no futuro, com decisões que se venham a revelar erradas e com consequências dramáticas para o seu povo. Cobardia e inimputabilidade em estado puro.