O hindsight bias ou enviesamento de retrospetiva, à falta de melhor tradução, ajuda a explicar porque é que algo que acontece é por nós sentido como mais provável e possível do que era antes de acontecer. Porque é que era difícil imaginar um smartphone há 20 anos como hoje é difícil imaginar o mundo e o futuro sem eles. Ou a democracia. E veremos se não acontecerá o mesmo com os sistemas de controlo e rastreabilidade de movimentos e contactos de cidadãos.
A democracia não foi a forma de governo mais comum ao longo da história da humanidade. Mesmo olhando para o mundo atual, a maioria das pessoas não vive em países com democracias consolidadas e até os democratas são seus críticos. Ainda assim, como questionou Churchill, haverá algum modelo de organização da sociedade melhor?
Na verdade, a democracia desenvolve-se como uma forma de governo preferencial nos países mais desenvolvidos muito pela necessidade de controlo da informação. O grande desenvolvimento tecnológico e científico do século XX trouxe maior complexidade à vida das pessoas e das comunidades. Pode argumentar-se que as raízes da valorização do indivíduo estão na revolução francesa. Em bom rigor, porém, o grande desenvolvimento da democracia acontece bem mais tarde porque antes do século XX, poucos dominavam todo o conhecimento, pelo que poucos dominavam muitos. A história do mundo foi assim construída com o domínio pelo medo e a partir de uma grande assimetria de conhecimento e de possibilidade de acesso ao mesmo.
Com o desenvolvimento tecnológico e a cada vez maior necessidade de especialização, começou a ser impossível poucos dominarem toda a informação. Esta foi a grande oportunidade para uma forma de governo em que todos, de algum modo, participassem, porque as necessidades e a acessibilidade ao conhecimento assim o ditavam. Foi a grande oportunidade da democracia e uma significativa maioria dos países desenvolvidos até ao início do século XXI criaram e consolidaram regimes democráticos. No entanto, também por darmos por adquirida a democracia pelo enviesamento atrás descrito, tem-se assistido a um progressivo enfraquecimento da mesma em alguns países, parecendo que algo está a mudar.
Com o grande desenvolvimento das tecnologias da comunicação, da inteligência artificial e os progressos na área do big data, tem sido possível obter e trabalhar uma cada vez maior quantidade de informação, de forma cada vez mais eficiente. Sem uma ampla e participada reflexão das implicações destes processos, muito rapidamente poucos parecem poder voltar a dominar a maior parte da informação do mundo e, adivinha-se, dominarem deste modo o mundo. Poucos e com motivações bem distintas. Uns, simplesmente devido ao ‘poder pelo poder’. Outros, com objetivos claramente económicos. E ainda outros porque, perigosamente, acreditam que são os mais capazes de definir o melhor para todos. Por muito que estes últimos pareçam mais legitimados, podem ser os mais nefastos porque, como a ciência nos informa, acreditando eles nisso mais facilmente fazem outros acreditar no mesmo.
A riqueza da humanidade está na sua diversidade, pelo que ninguém é dono da razão quando se trata do bem de todos e por isso de cada um. Mas hoje, com o controlo da informação, com uma certa ‘ditadura dos dados’, começamos a acreditar que sim, que existe uma resposta certa para todos e que por isso é legítimo promovê-la, para o bem de todos. Urge que desconfiemos de quem tem certezas sobre tudo e que sejamos muito críticos e reflexivos em relação à ideia de fornecer constantemente dados a alguns, poucos, com fins não claramente definidos e/ou legitimados. Temos, portanto, que encontrar formas de gerir os dados.
Formas que, desde logo, evitem que os dados obtidos das mais diversas formas sejam utilizados para potenciar o impacto de qualquer interesse particular. Isto tem sido particularmente visível nos resultados de várias eleições em países democráticos, com aqueles que têm menos escrúpulos e que mais dominam este tipo de comunicação, a ganharem vantagem sobre os outros pela sua utilização e não pelo debate que fazem das suas propostas. E formas que previnam a exponencial polarização de opiniões. As pessoas assumem cada vez mais certezas e extremismo nas suas posições por acederem a cada vez mais informação que suporta as suas crenças e desejos, dando uma falsa sensação de verdade e unanimidade em relação às mesmas. Paradoxalmente, com o aumento do potencial de informação, estamos mais focados em verdades absolutas, em clivagens tipo ‘esquerda/direita’, em certos e errados, resumidamente um mundo de muitas cores a reduzir-se cada vez mais a preto e branco.
A estes dois grandes perigos para a democracia junta-se o mais que provável desenvolvimento das tecnologias de rastreabilidade de movimento e contactos de cidadãos. Esta tecnologia já existe e fala-se agora da sua possível implementação em países com democracias consolidadas. Razões à parte da sua utilização, colocam-se algumas questões face a esta tecnologia. Desde logo será maior a qualidade e quantidade de dados sobre cada um de nós, proporcionando maior potencial de influência direta nos nossos gostos, escolhas e opiniões. Será, também por isso, maior o potencial poder de alguns sobre muitos e consequentemente a potencial emergência de um certo absoluto maioritário que poderá colocar em causa a diversidade de opiniões e condicionar a liberdade e autonomia individual, bases do modelo ético da nossa sociedade, da democracia e até do equilíbrio do nosso mundo atual.
Por isso cremos que debater se a pandemia que enfrentamos pode justificar ou não a utilização destas medidas de rastreamento é frágil. As opiniões serão mais ou menos positivas em função da maior ou menor perigosidade percebida com a evolução do vírus e da doença. Mas bem sabemos que, num amanhã talvez mais próximo do que esperamos, além da tentativa ilegal da sua utilização com fins económicos ou de limitação da privacidade de algumas pessoas, alguém acenará com esta tecnologia para conseguirmos controlar pessoas com determinadas características, deter um homicida, prevenir fenómenos terroristas ou garantir a segurança de alguém ou de algum local. Tornando-se parte do quotidiano, será cada vez mais difícil discordar da sua aplicação. Temos por isso que nos preocupar imediatamente com a prevenção da má utilização dos dados e promoção da sua proteção, garantindo que estes só poderão ser utlizados no melhor interesse dos seus proprietários: cada um de nós.
Neste sentido já propusemos e insistimos na criação de uma entidade totalmente independente de Estados e de grupos económicos, composta por personalidades eleitas democraticamente e com competências técnicas adequadas às necessidades – cibersegurança, ética, direito, psicologia e outras ciências sociais e da saúde. Esta entidade centralizaria e faria a gestão de todos os dados recolhidos, utilizando-os de acordo com os princípios de paternalismo libertário conforme Richard Thaler propõe – a possibilidade das instituições influenciarem um comportamento mas só e só se respeitando a liberdade de escolha e o comportamento dos cidadãos dela resultante.
A democracia e os cidadãos precisam de algoritmos de gestão de informação que permitam liberdade de escolha e que deem aos cidadãos acesso ao contraditório, ao contrário do que tem sucedido. Algoritmos que mostrem também b e c mesmo que só se procure (e acabe por escolher) a. Precisamos de algoritmos que promovam as diversas cores do mundo e não que forcem o preto ou branco. O melhor interesse de cada um de nós, verdadeiros proprietários dos nossos dados, é sermos ajudados a ser mais iguais a nós próprios e não mais como aquilo que poucos gostariam que nós fossemos. Só e só isto legitima a utilização dos nossos dados e poderá resultar no melhor interesse de todos e de cada um.
Tiago Pereira – Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses
Miguel Ricou – Professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; CINTESIS