Parece-me que há aqui qualquer coisa que não bate certo. Sabemos que uma adversidade inesperada como uma pandemia põe à prova qualquer sistema de saúde pública mas também qualquer nível de governação, desde o local ao regional, nacional ou europeu, por exemplo. Trata-se de um teste duríssimo para quem decide e para as populações. Mas a verdade é que começam a suceder coisas inexplicáveis – ou pelo menos de muito difícil explicação – nas leis e regulamentação em Portugal, para o combate à Covid-19. E isto apesar de os inúmeros louvores que o país tem recebido de dirigentes estrangeiros, os últimos dos quais terão partido de Donald Trump, que ligou ao presidente Marcelo a felicitá-lo pelo sucesso do nosso combate, ainda que certamente com outras intenções e o rasgado elogio do “Financial Times”.
Nesta altura em que as pessoas começam a ficar fartas do confinamento, a polémica estalou com o 1º. de Maio. Se o governo proibiu a circulação entre concelhos por que razão a CGTP manteve a sua celebração na rua? Para o cidadão comum não faz qualquer sentido não poder visitar os seus idosos nos lares ou familiares que moram em concelhos limítrofes do seu e, afinal, aquela organização sindical teve liberdade para fretar autocarros e transportar uma multidão através de diversos concelhos. Dir-me-ão que esta excepção estava prevista na lei e que terá sido negociada com Marcelo e Costa. Mas isso não apaga a injustiça que o comum dos cidadãos legitimamente sente.
Outra coisa já será a hipocrisia política do PSD e CDS-PP que votaram a favor do Decreto do Presidente da República Nº. 20-A/2020, de 17 de Abril, relativo à segunda renovação da declaração do estado de emergência, mas que vêm agora querer cavalgar a insatisfação geral dizendo que a excepção é inadmissível. Rui Rio chamou-lhe até “uma vergonha” retomando o argumentário populista do Chega. Se esta excepção está mal deviam ter dito isso no dia 17 de Abril quando votaram a favor da mesma. Ou foram politicamente desonestos então ou estão a sê-lo agora.
Igualmente boas razões para estar insatisfeita tem a igreja católica e a sua peregrinação do 13 de Maio a Fátima, depois do que se viu e da aparente abertura tardia que a ministra da Saúde deu na televisão para tais celebrações.
Mas há mais. O primeiro-ministro (PM) ouviu católicos e muçulmanos, mas deixou de fora a Aliança Evangélica (AEP), que tem muito mais representatividade do que o Islão, assim como outras vertentes religiosas presentes em Portugal. O presidente da AEP ainda está à espera de ser chamado pelo PM, de acordo com a sua promessa pública. Já sei que a desculpa para estas excepções é o 13 de Maio e o Ramadão, mas não cola. Podia ter chamado a S. Bento o presidente da Conferência Episcopal (uma vez que existe a Concordata, um acordo diplomático entre o estado português e o Vaticano) e uma representação da Comissão de Liberdade Religiosa, e assim todos estariam representados. Mais. Digam o que disserem, mas o facto de António Costa ter ido ao Seminário dos Olivais falar com o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, em vez de o chamar a S. Bento ou falar com ele por videoconferência agrava ainda mais o sinal político de discriminação religiosa.
Aliás, recorde-se, como aponta o Observatório para a Liberdade Religiosa, as lideranças dos grupos religiosos em Portugal “anteciparam-se ao próprio estado de emergência ou aplicaram, desde a primeira hora, as medidas adequadas para atenuar os efeitos da pandemia, com o encerrando ao público dos respetivos espaços, tendo dado conta destas medidas pública e expressamente.” E isto tem sido reconhecido por membros do governo.
O mesmo sucede com o futebol. Porquê chamar alguns clubes (por muito apoio popular que tenham) e outros não? Não bastava chamar os presidentes da Federação e da Liga? Eu não senti que o meu clube (Vitória Futebol Clube) tenho sido colocado em pé de igualdade com os outros. No desporto como da religião o que está em causa é o domínio dos princípios, e aqui o governo falhou. Mas no caso das religiões falhou ainda mais porque o estado tem o dever de uma postura laica, o que não significa ser contra as religiões como alguns querem, mas sim neutro em relação a toda e qualquer expressão religiosa que não infrinja a lei nem atropele os direitos humanos.
A ideia que pode ficar é que quem manda no país é o PCP (CGTP), a igreja católica e os três clubes grandes. Ora, isso é intolerável para os clubes mais pequenos, para as minorias religiosas e para todos os outros partidos, sendo igualmente incompreensível para os cidadãos em geral. Além disso abre caminho aos enviesamentos sectários e populistas de sectores políticos e religiosos fortemente expressos nas redes sociais nos últimos dias.
Do ponto de vista político até se pode compreender que o governo minoritário do PS não queira criar fricções com a esquerda, os sindicatos ou a igreja católica, mas nunca poderá deixar cair os princípios democráticos. Também Marcelo precisa do apoio do PS para se reeleger e vai-lhe piscando o olho. Mas conviria à oposição ver-se ao espelho antes de abrir a boca.
Todos sabemos que não é fácil tomar decisões em terreno tão instável como o que estamos a pisar nestes últimos dois meses. De acordo com sondagem publicada há dois dias, António Costa aumentou a sua popularidade para valores nunca antes registados e Marcelo seguiu a mesma tendência. Duvido mesmo que algum outro primeiro-ministro conseguisse fazer melhor, mas não conviria que o precioso consenso estabelecido entre Belém, S. Bento e partidos políticos, no enfrentamento da pandemia, assim como o bom desempenho geral da governação, viessem agora a ser postos em causa por atitudes casuísticas inexplicáveis. Em política ainda continua a valer a regra de que “o que parece, é!”.