A Economia não pode esperar e o vírus parece ter enfraquecido. O número de novos infetados está com baixas taxas de crescimento, os casos mais complexos também estão a diminuir e a letalidade está estável e em valores inferiores a 4%. Os especialistas, embora reconhecendo que o RO está ainda à volta de 1, o que é sinónimo de que cada infetado vai necessariamente infetar outra pessoa, admitiram já que devemos começar a diminuir as medidas de confinamento.
Nesta fase, as prioridades do Governo viram-se para as questões económicas e para a retoma das atividades das empresas e dos serviços públicos e para as novas regras da nossa vida coletiva (ensino, transportes, compras, convívio social, viagens, turismo, cultura, lazer, restauração, etc.). Nada será com dantes e o processo de abertura será lento e progressivo. Ao mínimo excesso tudo voltará para trás.
Na Saúde, há lições desta pandemia que ficarão para sempre e novas estratégias e procedimentos que teremos que adotar para esta fase de desconfinamento.
1. A importância estratégica dos serviços públicos
As questões de saúde pública são sempre melhor assimiladas e resolvidas quando há unidade de comando e uma forte liderança do Estado. Do mesmo modo, numa situação de calamidade sanitária como esta, a resposta dos serviços públicos, apostada apenas em servir o melhor que pode e sabe a uma procura amedrontada e, por vezes, em pânico, contrasta com os interesses comerciais que aproveitam todas as fragilidades alheias para sugerir tratamentos excessivos, mais caros e sem controlo económico ou social. Não internámos quem não precisou, não colocámos em cuidados intensivos doentes sem critério de gravidade, não cobrámos aos doentes o equipamento de proteção dos profissionais.
O SNS esteve ao nível do que alguns de nós esperavam. Em situações de crise, de gravidade e de emergência, é o SNS que melhor responde às necessidades dos portugueses e foi o que se confirmou mais uma vez. Poderá ter sido uma surpresa para muita gente e foi, seguramente, uma pequena contrariedade para todos aqueles que estão sempre prontos a criticar os serviços públicos e a exigir deles benefícios ou contrapartidas inaceitáveis para qualquer Governo. O SNS parece ter ganho, com esta crise, o estatuto de intocável e fator de vantagem competitiva de Portugal no contexto do turismo internacional, tal a imagem de qualidade e de confiabilidade que passou para o resto do mundo. Quem diria, há poucas semanas atrás?
Nestas crises de saúde pública é também importante ter uma clara e única linha de comando, que defina a estratégia de combate, os meios operacionais de primeira e segunda linha, o processo de recolha e transmissão de informação e os critérios clínicos de intervenção. Tudo isso correu, no essencial, bem e devemos atribuir o mérito a quem o tem: o Governo e em particular os titulares do Ministério da Saúde, com destaque para a Ministra, Marta Temido, a Diretora Geral da Saúde e a sua equipa, os gestores e as direções clínicas dos hospitais e, sobretudo, os profissionais de saúde que, com diligência e competência, responderam sempre bem, com parcimónia e critério técnico, mas também com extrema humanidade. Em Espanha, por exemplo, as autonomias regionais foram um fator de ruído na implementação de uma estratégia forte e bem calibrada de combate à pandemia, com a assunção de políticas diferentes e com pouca coordenação.
2. A prioridade às pessoas com mais idade
Os impactos desta pandemia incidiram de forma mais dramática na população idosa. Não por uma mera questão de idade, mas pelas patologias associadas de que muitos deles são portadores. Este vírus soube explorar bem as fragilidades dos doentes crónicos e com uma saúde debilitada. Por isso, a taxa de letalidade fustigou predominantemente os mais velhos, com mais de 80 anos, e que representam quase 70% dos óbitos com COVID.
Há aqui um fator adicional que concorreu para esta especial incidência. A maioria dos óbitos provém dos lares e residências dedicadas a pessoas seniores. São espaços em que os utentes vivem, efetivamente, já confinados e de onde quase nunca saem. Não são instituições de saúde mas acolhem doentes. E aqui está o grande equívoco na legislação e regulamentação destes espaços. Estes equipamentos comunitários não têm competências em matéria de diagnóstico, tratamento e reabilitação, mas acompanham, como podem e sabem, doentes. Socorrem-se de hospitais públicos e centros de saúde quando um dos seus utentes descompensa e sentem que necessita de ser observado por um médico. São frequentes as requisições de ambulância para transportar esses doentes aos serviços de urgência, aonde muitas vezes chegam desidratados, desnutridos, com infeções urinárias e respiratórias graves e com escaras. Isto acontece com lares sob a alçada da Segurança Social, das IPSS, das Misericórdias e dos privados, licenciados ou clandestinos.
O despacho 4959/2020 de 24 de abril, da Ministra da Saúde, parece querer alterar esse paradigma, ao colocar esse tipo de alojamento sob o controlo clínico dos centros de saúde da sua área de localização, em articulação com o hospital de referência. Isto para os doentes COVID. Essa determinação prevê a formação dos funcionários em matéria de segurança, higiene, utilização de dispositivos de proteção, organização do trabalho, circuitos de pessoas e bens,etc, com a intervenção complementar da Unidade de Saúde Pública do respetivo ACES.
Este passo é de extrema importância para o futuro imediato, mas deve ser, a meu ver, alargado definitivamente aos utentes e profissionais dos lares. O Estado tem a obrigação de defender e preservar a qualidade dos cuidados prestados às pessoas mais velhas e que por razões sociais, familiares e do mercado de trabalho, vivem nessas instituições. A tutela da Segurança Social é insuficiente e, em muitos domínios, inadequada. O Ministério da Saúde deverá assumir, como suas, as responsabilidades de prestar a estes cidadãos os cuidados de saúde de que necessitam, não ficando à espera que eles cheguem à porta das urgências, às vezes em estado terminal, mas prevenindo “in loco” eventuais problemas e sempre que possível tratando e vigiando, sem obrigar o utente, por vezes acamado, a deslocações que lhe são penosas, incómodas e muitas vezes desumanas. São, afinal, beneficiários do SNS como todos nós e é legítimo que tenham uma atenção médica ajustada à sua situação de saúde. Esta pandemia mostrou a enorme fragilidade destas instituições. É uma oportunidade única para reestruturar e redignificar este setor.
3. Um controleiro chamado telemóvel
Vários países estão a estudar a possibilidade de utilizar “apps” informativas que sinalizem a presença próxima de nós de um infetado com COVID -19. Isso permitir-nos – ia abandonar o perigo e simultaneamente denunciaria o infrator. Tudo me parceria aceitável e eficaz se todos aceitassem participar e se os dados recolhidos pelas operadoras não pudessem, um dia mais tarde, prejudicar seriamente a nossa privacidade e servir para fins menos próprios. Quem nos garante as duas coisas?
4. O risco de um “rebound”
Estamos todos cansados do confinamento e o facto de termos esta pandemia, para já, controlada, leva-nos intuitivamente a relaxar a guarda, a perder o medo, a aumentar saídas e a reiniciar o convívio social. A reabertura das atividades económicas vai ser faseada, mas implicará, de imediato, mais pessoas na rua e mais contactos nas fábricas, nas lojas, nos escritórios, nos serviços públicos e nos restaurantes. Os riscos de um novo surto são por isso bem reais, se não cumprirmos com rigor, as regras de etiqueta respiratória, o uso da máscara e a lavagem frequente das mãos. O respeito pela distância social em todos os momentos é crucial para o sucesso desta fase de desconfinamento, gradual e sob vigilância das autoridades. Considero, ademais, que pode ser útil o simples controlo da temperatura dos trabalhadores, diário, à entrada das empresas, pois previne eventuais focos de contágio e protege os próprios infetados. Falar em direitos individuais à privacidade, deste tipo, quando há um interesse público superior é, neste contexto, puro disparate.
5. A retoma da atividade hospitalar
Os serviços de saúde vão ter que estar preparados para um novo surto, eventualmente mais violento do que o primeiro, como ocorreu com a gripe espanhola nos primeiros anos do século passado. Mas têm, simultaneamente, de recuperar os significativos atrasos que, por força da mobilização de recursos para o ataque à COVID, prejudicou muitos doentes crónicos e com intervenções ou consultas que tiveram que ser adiadas. As consultas externas, em março, diminuíram mais de 8%, face ao mesmo período do ano passado, sendo essa queda mais expressiva para os novos doentes (- 22%). Nas cirurgias programadas registou-se uma diminuição de 40%. Estes cancelamentos podem ter um impacto muito prejudicial em muitos doentes, que podem descompensar, necessitar de internamento urgente ou, no limite, morrer. Este esforço vai exigir nova mobilização dos profissionais, para horários alargados de trabalho e para a organização de task forces que reagendem marcações, priorizem os doentes mais graves e respondam num tempo curto.
É um novo desafio que se coloca aos nossos hospitais e que exige modelos especiais de remuneração que compensem mais este esforço que é pedido aos profissionais. A criação de incentivos que premeiem, razoavelmente, aqueles que se empenhem neste processo de recuperação de listas de espera, deverá ser conduzida centralmente pelo Ministério da Saúde, com verbas próprias e exclusivas para o efeito e ao abrigo da excecionalidade que a própria UE prevê para esta crise. E é essencial para que o prestígio, agora reforçado, do SNS, se mantenha e perdure. Em última instância, dever-se-á recorrer ao setor privado, com controlo e sempre de forma supletiva.