O caso da Sara, uma jovem sem-abrigo da Cidade de Lisboa, que pariu na rua sozinha, sem qualquer assistência, e de seguida pôs o bebé num contentor de lixo, foi um acontecimento que perturbou profundamente a sociedade portuguesa.
A Sara vivia, conjuntamente com outros sem-abrigo, numa tenda junto a Santa Apolónia. Tem 22 anos, nacionalidade cabo-verdiana, graves problemas de exclusão social e esteve grávida 36 semanas, sem que aparentemente alguém desse por isso.
Este caso terrível, que tanta intervenção e tinta fez correr, levanta questões que vão para além do caso da mãe e do menino, um caso que se tornou representativo do limite da exclusão e da pobreza que existe nos meios urbanos, que precisa de reflexão profunda e de questionamento dos modelos de intervenção.
A dinâmica mediática levou à procura imediata de resposta política. Reuniões relâmpago, procura de aferir a regularidade de financiamentos. Tornou-se necessário encontrar responsáveis. Mas neste caso limite, até ao momento, a única pessoa a quem foi apontada responsabilidade foi à Sara, que se encontra detida em prisão preventiva.
A história da Sara e do bebé traz para a agenda, de forma mais incisiva, o questionamento do tipo de intervenção que se faz junto dos sem-abrigo em Portugal e qual o grau de eficácia dessa mesma intervenção.
A Sara era acompanhada numa Instituição de Solidariedade Social, onde, segundo a própria, fez um teste de gravidez que se revelou positivo. E a pergunta obvia é: que acompanhamento foi dado a esta rapariga e a esta gravidez a partir desse momento? Cada caso é um caso que precisa de acompanhamento individualizado, porque os fatores que determinam cada situação são diferentes.
O fenómeno dos sem-abrigo, endémico às sociedades mais complexas e também este complexo, encerra em si uma profunda expressão da pobreza e da exclusão social. Quem quer resumir o tema a falta de habitação e a falta de trabalho, tem uma visão muito simplista e limitada do problema.
A razão porque há concidadãos nossos a viver na rua, prende-se com dimensões sociais: desemprego, desestruturação familiar, prostituição, imigração ilegal, mas também com dimensões de saúde: doença mental, toxicodependência e alcoolismo. E por essa razão a solução não passa apenas por um teto e por emprego.
A intervenção que é feita pelas Instituições Sociais que prestam apoio a esta população, que considero meritória, é uma intervenção que, na maioria dos casos, é paliativa. Sabemos que dar comida nas ruas, não é apenas dar comida, é encontrar processos de comunicação com um grupo de pessoas excluídas, que muitas vezes não querem estabelecer nenhuma comunicação, mas é preciso, a partir desta estratégia, ir mais longe na intervenção especializada necessária.
Talvez fosse o momento, e o caso da Sara apela a que aconteça, de repensar o modelo de intervenção na comunidade sem-abrigo. Porque de facto este caso extremado deve fazer tocar todas as campainhas de questionamento do trabalho que é feito nas ruas.
O que vejo, e tenho acompanhado todo este caso de perto, é um aproveitamento desta história para fins que não são os mais apropriados, que não se debruçam ou se interessam sobre o que aconteceu até àquele momento do parto e da rejeição da criança. Vejo um pedido de habeas corpus por advogados que nunca perguntaram à Sara sobre a sua vontade e que não se preocuparam com o que lhe aconteceria se a decisão fosse positiva.
Vejo advogados a oferecerem-se para acompanhar o caso, apesar de haver, desde o primeiro momento, uma advogada oficiosa de defesa nomeada pelo tribunal ao lado da Sara. Vejo as instituições públicas a procurar dar respostas e a acelerar uma Estratégia Nacional. Vejo a pressão que o caso criou, a quebrar a rotina da ação institucional e a dar-lhe um novo folgo.
Há 20 anos poucas eram as instituições que trabalhavam com sem abrigo e os acolhimentos noturnos eram praticamente inexistentes. Hoje há muitas instituições e felizmente respostas que não permitem que se morra de frio nas ruas das nossas cidades. Mas é necessário repensar a intervenção, aprofundando o modelo, reforçando a componente de saúde mental, da saúde pública e do acompanhamento técnico, criando condições para que outros casos como o da Sara tenham outro desfecho, para que em Portugal haja uma intervenção musculada no combate à exclusão social dos que vivem na rua, que precisa de ir mais além do voluntarismo e do voluntariado.
Se os sem abrigo irão acabar em 2023? Acho que não. Mas quero acreditar que até lá todos aqueles e aquelas que puderem e quiserem sair da rua o farão, porque as Instituições portuguesas estão à altura de os apoiar nessa mudança. Quanto aos que ficarem na rua, é necessário acompanhar e monitorizada, para que casos como o da Sara se tornem uma recordação de tempos passados.
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