1 – O Livre, como muitos partidos recentes e pequenos, sempre se confundiu, na cabeça dos poucos portugueses que se interessam por política, com o seu fundador. Sempre foi, imagino que até contra a vontade do próprio, o partido de Rui Tavares. E, como tal, sempre esteve inequivocamente associado a valores de esquerda, mas também a uma cultura de tolerância, a uma tradição de respeito pelo debate racional de ideias e a uma forma de luta política que nunca precisou de recorrer a radicalismos de linguagem nem a provocações gratuitas para fazer um combate político firme e pleno de convicções. Ora, digam o que quiserem, julguem a mudança como entenderem, o Livre de Rui Tavares morreu. Está aí, para o bem e para o mal, o Livre de Joacine Katar Moreira.
2 – A recusa inegociável da discriminação com base na cor, no sexo ou na religião não é um património ideológico exclusivo da esquerda, muito menos um património exclusivo do Livre. A luta por uma sociedade com plena igualdade de oportunidades também não. Ambos os ideais estão inscritos no centro do pensamento liberal clássico tal como eu o entendo e tal como eu o defendo. O abismo que nos separa é outro: o sujeito das políticas que dão tangibilidade a essas ideias.
Para um liberal é o individuo, independentemente do seu sexo, religião ou cor, o centro de todas as políticas. É o individuo, nascido livre e com direitos iguais a todos os seus concidadãos, num país em que continua a existir um racismo profundo e enraizado, que quero proteger dos preconceitos e das discriminações, sejam elas expressas ou latentes. É ao indivíduo, num país em que continua a ser profundamente classista, que quero assegurar uma plena igualdade de oportunidades.
Já a esquerda identitária do Livre, em nome de ideais igualmente (mas não mais) generosos, faz do grupo (paradoxalmente definido com base na cor, na religião ou no sexo) o sujeito da aplicação das suas políticas. É o grupo, independentemente das diferenças que felizmente fazem de cada um de nós um ser humano único e inconfundível, que é necessário proteger, promover, defender. A abordagem será legítima, mas é perigosa porque abre a porta a todas as demais políticas que fazem do grupo o objeto das políticas. E aproxima, neste particular, a esquerda identitária do Livre ao nacionalismo do Chega.
3 – O ressentimento, para quem foi (e é) alvo de injustiças profundas, continuadas, grosseiras, é um sentimento compreensível, porventura até inescapável. Não consigo ser moralista a esse respeito. Mas uma coisa é compreender o ressentimento à escala do indivíduo alvo de injustiças. Outra é aceitar fazer do ressentimento uma arma política. Se é verdade que esta é particularmente eficaz, se é verdade que é fácil mobilizar em seu nome, não é menos verdade que é do ressentimento que se alimentam os vários populismos que ameaçam a liberdade em várias partes do mundo ocidental, da Hungria ao Brasil. Mas é sobretudo verdade e é importante recordar que foi em seu nome, em nome das paixões incontroláveis do ressentimento politicamente explorado, que se perpetraram algumas das maiores barbaridades da História.
Receio bem que a política do ressentimento esteja a fazer um imparável caminho entre nós. Se isso era já evidente para quem viesse a acompanhar a caminhada de André Ventura, devo confessar que vejo inquietantes sinais do mesmo fenómeno na irrupção de Joacine Katar Moreira no panorama político português. Concedo que é cedo para ter certezas. E espero, muito sinceramente, estar enganado.