De manhã ainda se comentavam os incêndios que, na antevéspera, tinham engolido hectares e hectares de floresta, de norte a sul do país. Daí a pouco começavam a chegar as primeiras notícias de que algo estava a acontecer. Grupos de pessoas começaram a formar-se para protestar: cortavam estradas, agitavam bandeiras libanesas, e gritavam Thaura! Thaura! (‘revolução! revolução!’). Naquela primeira quinta-feira as coisas foram confusas, e temia-se que tal movimento pudesse descambar em violência. Estradas barricadas com caixotes do lixo em chamas, montras estilhaçadas, palavras amargas trocadas entre manifestantes e militares, que ainda não sabiam como reagir: deveriam impedir os protestos ou não?
Na sexta-feira, a Praça dos Mártires e toda a avenida que liga esta praça ao edifício do parlamento, a cerca de 300 metros de distância, estavam já inundadas por várias centenas de milhar de pessoas. Nove dias depois, esse número não tem parado de aumentar, não só em Beirute, mas por todo o país. Tripoli, Zahlé, Sidónia, Tiro, Biblos, Batrun, Babda, Nabatié: a manifestação tem uma escala nacional.
São várias as coisas que impressionam, nestes protestos. Impressionam, desde logo, pelo facto de terem começado espontaneamente. Não foram cartazes nem campanhas que levaram as pessoas à rua: saíram por seu próprio pé, movidas pela sua indignação. Impressiona, também, pela sua força mobilizadora: são milhares e milhares de pessoas na rua. As ruas e praças foram sendo ocupadas por palcos improvisados com sistemas de som alimentados por baterias de automóvel. De cada um deles vão-se soltando músicas de intervenção. Canta-se a beleza do Líbano, a sua história, as suas feridas, os seus heróis, o seu futuro. Desses palcos levantam-se também refrões de contestação: «Ladrões!», «De todos! O país é de todos!», «O povo quer que o governo caia!», «Somos pacíficos!», «Fora com a corrupção!», «Queremos um futuro para os nossos filhos e netos!», «O Líbano tem fome!». As palavras são duras e cruas, mas o ambiente é estranhamente sereno e alegre, até. Sente-se uma vontade de renovar as coisas, e energia para lutar por isso.
Para além dos palcos e das colunas de som, as ruas são também polvilhadas por equipas de televisão, que se desdobram para entrevistar quem quer que se aproxime do microfone. Os ecrãs de televisão e das redes sociais têm servido de catarse e terapia pública. A unanimidade do mal-estar é por demais evidente, também aí. Lamenta-se o desemprego, a falha governamental na garantia de serviços básicos (água, luz, estradas, saúde) e, sempre, o sentimento de injustiça perante um sistema corrupto.
«Esta manifestação uniu-nos de novo», dizia uma estudante universitária há dias, perante as câmaras da BBC. Ao percorrermos as ruas, ficamos com essa mesma impressão. À nossa volta vemos crianças, adolescentes, jovens, adultos e pessoas de cabelo grisalho, mulheres e homens. Frases como «Chiítas, sunitas, druzes e cristãos: o Líbano é de todos!», ditas a plenos pulmões da escadaria da grande mesquita central, amplificam esse sentimento e desejo de união. Os manifestantes resistem a partidarizar os seus protestos, especialmente num país onde os partidos estão identificados explicitamente com as diferentes confissões religiosas.
Mas, se há convergência no diagnóstico dos problemas do país, fica no entanto a pairar uma enorme interrogação a respeito das alternativas para o futuro. De momento, os manifestantes pedem para que o governo seja dissolvido e que declare novas eleições, ficando o país a cargo dos militares durante o período de transição. Resta saber quais serão as propostas, e de que modo os partidos políticos (e os seus apoiantes) reagirão a este puxão de orelhas popular; isto, claro está, se o governo aceitar. À medida que o tempo passa, a espera pode trazer à tona ansiedades e quebrar esta frágil unanimidade popular. Com efeito, hoje mesmo notaram-se em Beirute os primeiros sinais dessa fatiga, com alguns distúrbios provocados por apoiantes do Hezbollah, próximo do centro da capital. Vive-se pois um ambiente de expectativa, com bancos fechados, estradas cortadas e cordões militares, enquanto uma onda de gente persiste em exigir um novo começo para outro futuro.