O celebrado artigo da profª Fátima Bonifácio teve, paradoxalmente, uma interessante virtude. Vem provar que, ao contrário do que sustenta a fantasia luso-tropical, as disposições, os preconceitos e as atitudes racistas continuam a existir, bem vivas, na nossa sociedade. E vem até demonstrar que medram onde, provavelmente, menos esperaríamos que existissem: na academia. Tal deve obviamente bastar-nos para que possamos convergir no essencial. E o essencial é um empenho sem reservas, em nome de uma defesa dos Direitos Humanos mais elementares, no combate implacável ao racismo na sociedade portuguesa.
Isto dito, quer parecer-me que numa sociedade civilizada podemos livremente divergir na forma de fazer esse combate sem que tenhamos de inferir, a partir de posicionamentos diferentes face a esta questão, alegadas reservas ou condicionamentos em relação ao problema de fundo. Ora, se há uma coisa que ficou provada com o interessante debate dos últimos dias é que há, pelo menos, dois pontos que parecem dividir a sociedade portuguesa e que vale a pena debater.
O primeiro é o de saber se devemos sequer dar voz a quem, ainda que de forma intelectualmente indigente, defende ideias preconceituosas e racistas, como é caso de Fátima Bonifácio. E eu, reconhecendo que não há direitos absolutos, sei bem de que lado estou nessa contenda. A ideia de liberdade de expressão só faz sentido para as ideias que nos repugnam. E faz sentido defendê-la porque as ideias repugnantes se combatem com ideias luminosas, com argumentos racionais, com factos comprováveis. Não se combatem com silenciamentos ou com tabus. Nem a sociedade tem nada a ganhar em remetê-las para uma clandestinidade larvar. Aliás, o que se passou esta semana é a prova disso mesmo. O artigo de Fátima Bonifácio mereceu – e bem – uma violentíssima contestação no espaço público. Será sustentável a ideia de que seria preferível que se limitasse a expressá-la, evitando o contraditório, fugindo ao debate público, nos corredores da academia, no recato das suas aulas, no remanso do seu círculo de amigos? O outro ponto que me parece muito divisivo na sociedade portuguesa é o tema das quotas. Devo confessar que tenho um problema filosófico com a solução. Porque acredito que nós não somos seres unidimensionais. Transporto em mim a dimensão do género, da cor da pele, da orientação sexual, da disposição religiosa, e sou uma combinação única de todas essas dimensões. Eu não sou mais branco do que sou homem ou do que sou ateu. Não me defino exclusivamente por nenhuma dessas categorias e só me defino por todas elas. Por isso mesmo acredito que o sujeito das políticas públicas não pode ser senão o indivíduo, nascido com direitos iguais e dignidade igual a todos os demais indivíduos. É a dignidade inviolável do ser humano que eu tenho obrigação de proteger. São os direitos fundamentais do indivíduo que eu quero que sejam assegurados.
Tenho, por contraponto, muita dificuldade em fazer de um qualquer grupo, definido com base na cor da pele, da religião ou do género, o sujeito das políticas. Até porque ao aceitar fazê-lo, estou precisamente a reconhecer que essas categorias de alguma forma podem ou devem sobrepor-se à da universalidade da nossa condição humana.
Isto dito, reconheço que para combater o racismo não podemos ficar bloqueados por interditos filosóficos e que, face à nossa manifesta incapacidade para eliminar o problema em 40 anos de democracia, somos impelidos a ser práticos. Mais: reconheço que a recusa da solução das quotas me interpela, porque quero ser intelectualmente honesto, a defender soluções alternativas eficazes. E é precisamente porque estas não são óbvias, e porque não tenho todas as respostas, que gostava de ver o tema debatido de forma civilizada, racional, e fora das trincheiras dogmáticas do costume. Será pedir muito?