Tenho dificuldade em supor, sequer, o que conduzirá alguém a ameaçar, coagir, agredir, violar, torturar ou matar uma pessoa de que não goste. Não consigo conceber que algum desses atos seja praticado contra alguém que se ame. Remotamente imagino – e não mais que isso – o inferno em que se transforma o dia a dia de alguém que vive sob o jugo de um monstro. Não maquilho a realidade: 2019 está a ser um ano de chumbo no capítulo da violência doméstica. Não escamoteio o iniludível: a semana passada constituiu um rude golpe para todos os que se batem por uma sociedade que não normalize esses comportamentos e que não desvalorize o terror exercido maioritariamente sobre as mulheres.
No Portugal que eu defendo, não se arquivam 21 mil processos de violência doméstica num ano (2018). No Portugal pelo qual exaspero, não se permite que uma mulher perca a mãe e a filha às mãos de um tirano porque as autoridades competentes menorizaram uma situação de “risco elevado” durante demasiados meses. No Portugal que idealizo, não se assobia para o lado perante o facto de 83% das vítimas que recorrem à APAV serem mulheres. E, no Portugal com que sonho, não há lugar para a moralidade sexual de juízes como Joaquim Neto de Moura, nem para sentenças misóginas e eivadas de crenças cavernícolas.
Sejamos claros sobre as decisões de quem tem o dever de punir as bestas e de as afastar de uma sociedade sadia. “Uma advertência ao juiz Neto de Moura é um insulto a todos nós, não apenas às mulheres”, escreveu, coberta de razão, a jornalista Paula Caeiro Varela. Não nos entrincheiremos. Elas não estão de um lado e eles do outro – estamos todos do mesmo. Sem hesitações ou cedências.
Todavia, mesmo reconhecendo que o caminho até à efetiva igualdade é longo e estreito, e admitindo que existe um caldo cultural de inegável ascendência masculina, não aceito ser colocado no papel do algoz. Não sou, como escreveu Pedro Marques Lopes (PML), cúmplice de assassinos por, em circuito fechado, fazer uma piada machista. Não sou redutível à categoria de feminicida só porque um comentador – um dos prediletos do regime, é certo – usa a diluição da culpa como meio de alarme social.
É, aliás, bem típico da “nacional-desresponsabilização” este método de democratização do pecado. Não, não somos todos Manuel Maria Carrilho no que respeita a violência doméstica porque nos rimos de uma graçola sobre mulheres e tarefas domésticas. Não somos todos Mário Machado quando identificamos que bairros como o Jamaica padecem de problemas bem mais profundos do que o racismo.
Também não somos todos José Sócrates, incautos ou negligentes, perante a iminência de uma bancarrota. Não somos todos Cavaco Silva, mesmo sem nascermos duas vezes, por não sermos vigilantes das relações entre o Estado e amigos banqueiros. Também não somos todos Valdemar Alves por nos termos abstraído durante décadas dos problemas decorrentes da desertificação do interior ou por nos termos alheado prematuramente da recuperação de Pedrógão Grande. Tão-pouco somos todos Azeredo Lopes quando, à mesa do café, dizemos que Tancos foi uma maquinação de alguns militares e encolhemos os ombros perante manobras de encobrimento de um furto sem paralelo.
Estranha mundividência esta em que o universo abrangido por uma generalização determina o seu grau de aceitabilidade (ou até de empatia) social. Tal como PML, alguns tudólogos pátrios usam recorrentemente esta estratégia: atribuem-nos uma responsabilidade coletiva, geral e abstrata, inviabilizando que ela seja imputada, em particular e concreto, a alguém. Quando todos somos culpados de tudo, ninguém é culpado de nada. Para esse peditório jamais darei.