Nela podemos verificar uma postura de “vergonha e arrependimento”, por parte daquela comunidade eclesial, assim como a assunção de que “nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado”.
Francisco questiona o próprio testemunho da igreja católica, ao afirmar: “sentimos vergonha quando percebemos que o nosso estilo de vida contradisse e contradiz aquilo que proclamamos com a nossa voz”, um pouco na linha da sabedoria popular: “Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz!”
Nesta sua epístola, o papa não só faz uma clara condenação do abuso sexual de menores como do seu vergonhoso encobrimento no seio da estrutura eclesial. Fala mesmo em “traição dos discípulos” e desabafa: “quanta soberba, quanta autossuficiência!…”
Mas faz mais. Apela à denúncia destes crimes: “Denunciemos tudo quanto possa comprometer a integridade de qualquer pessoa”. E propõe exercícios penitenciais, mas também o “compromisso com uma cultura de cuidado”, além de “compaixão, justiça, prevenção e reparação”.
Mas o cerne da missiva é o reiterado ataque ao clericalismo, apontando-o como causa profunda destes e doutro tipo de crimes: “dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”. Porque os crimes de abuso sexual, sejam pedofilia ou violação, são essencialmente uma questão de poder. O agressor abusa e viola porque julga que sairá impune.
Embora o abuso sexual de crianças em instituições não seja exclusivo do sacerdócio católico, uma vez que sucede também em meio escolar e desportivo, e até noutras áreas religiosas, mas não há notícia de problemas com esta dimensão: A novidade aqui é a quantidade, o que torna este problema ainda mais chocante para qualquer pessoa, inclusivamente católicos praticantes.
Mas como pode um homem – mesmo sendo papa – no meio duma cúria que lhe é tantas vezes hostil, combater o clericalismo, numa organização religiosa com dois milénios de existência? Como pode um idoso com 81 anos vencer um sistema de tipo imperial mas recheado de contrapoderes nas cúpulas, a menos que seja a própria igreja a levantar-se e a exigi-lo?
Movimentos como o “Nós Somos Igreja”, alguns bispos e indivíduos isolados têm vindo a público sugerir mudanças, incluindo o fim do celibato obrigatório, mas a grande questão de fundo – o clericalismo – parece estar muito para lá disso, e passa certamente pelo empoderamento dos leigos (homens e mulheres) nas paróquias, pela prestação de contas dos bispos e sobretudo por uma mudança profunda de toda a igreja católica, no sentido da transparência e duma cultura não de poder mas de serviço.
Os belos exemplos sacrificiais dos missionários católicos em teatros de guerra e regiões perigosas do mundo, ou o trabalho social e caritativo junto dos mais pobres dos pobres e doentes não chegam, nem combatem o clericalismo, se nada mudar na praxis do clero secular e na cultura episcopal diocesana.
No fundo vamos sempre dar ao mesmo, a sedução pelo Poder tem sido o calcanhar de Aquiles da Igreja ao longo dos séculos.