Quando começou a chover, os comerciantes fecharam as suas lojas e vieram para a rua festejar. As crianças saíram das salas de aulas e cantavam e abraçavam-se no recreio. Na praia, adultos entravam mar adentro apesar das ondas e erguiam os braços para o céu, lançando água do mar para cima e recolhendo gotas de chuva que depositavam em baixo, como se estes seres humanos fossem responsáveis por uma cadeia de transmissão atmosférica e intercontinental. Uma euforia geral atravessava a cidade, uma celebração coletiva que nenhum comício político ou procissão religiosa conseguiria jamais imitar. Com sete dias de atraso, a monção tinha chegado, finalmente, a Cochim.
Fiquei desconfortável e sem alternativas para a minha visita de Cochim. Chovia torrencialmente. Embora já soubesse a resposta, perguntei ao condutor do riquexó a quem tinha contratado o tour da cidade quando pensava ele que a chuva ia parar. Respondeu com convicção: “Daqui a uns 4 meses.” As gotas eram grossas e pesadas, tinham quase a atitude insolente do rockstar que se digna a uma sessão de autógrafos perante um grupo de fãs histéricos. A insolência da chuva fazia parte da identidade da nação: depois de vários meses de seca e de calor progressivo, o regresso da monção era a válvula de escape de um quinto da humanidade.
Fiquei a pensar nisso. Um quinto da humanidade vive em função de duas temporadas completamente distintas e identificadas. Entre outubro e abril, uma ausência total de precipitação. De maio a setembro, o seu excesso. Não há margem de manobra, não há alternativa expectável, não há surpresas nem milagres. O clima é assim. Fiquei a pensar na forma como uma identidade coletiva se molda e se constrói nos milénios tendo como base este pressuposto. Os indianos e a sua monção. Os nórdicos e os seus longos invernos noturnos e depois os verões em que nunca anoitece. Nós, os portugueses, com as nossas quatro estações definidas e interligadas, em transição subtil de uma para a outra, sem grandes extremos de temperaturas ou de luminosidade e que apesar de tudo permitem sempre uma variação, uma condescendência, uma nuance criativa: um dia de verão em novembro, uma depressão atmosférica em junho, um raio de luz no meio das nuvens ou a brisa fresca da nortada no meio da canícula. Uma liberdade de ludibriar as regras. Quem sabe qual dos povos o mais feliz? Talvez todos iguais, depende da forma como nos fomos desenvolvendo e adaptando de acordo com estas contingências.
A palavra “monção” deriva do árabe mausim que significa “temporada” e aplica-se ao regime dos ventos do oceano Índico: sopram de sudoeste para nordeste durante a época das chuvas, na direção contrária durante o resto do ano. Com os ventos do mar chegam as nuvens. A grande perturbação atmosférica que invade a Índia desde o sul do oceano Índico atinge primeiro a ponta mais meridional do subcontinente; e a uma velocidade de cerca de 15 quilómetros por hora vai lentamente subindo pelo país, dia após dia, até alcançar por fim a barreira dos Himalaias. Os noticiários acompanham o fenómeno atmosférico, os meteorologistas fazem os cálculos e as previsões para a hora exata da chegada da chuva a cada grande cidade e região.
Em Cochim, testemunhei a chegada da monção, o regresso da chuva depois da temporada seca. Para quem nunca passou por este fenómeno pagão, não é possível ter uma ideia do que ele representa. Para nós, o regresso da chuva é uma contrariedade que nos atrapalha o dia. Para os indianos é um exorcismo que regenera a própria vida