Nem é preciso revelar onde se estava no dia 25 de Abril para saber que há 44 anos houve no País uma revolução militar e política, sem dúvida, mas também cultural e cívica. De súbito, e no que ao mercado editorial diz respeito, as livrarias encheram-se de obras que, em boa verdade, no tempo da ditadura já circulavam entre as elites ilustradas e urbanas, mesmo nas conotadas com a “situação”. Agora, no entanto, tais obras podiam vender-se livremente, às claras, e, mais do que isso, podiam ser divulgadas pelo povo que, segundo se dizia, necessitava de ser alfabetizado; desde logo, alfabetizado tout court, atenta a impressionante percentagem de portugueses que em 1974 não sabiam ler nem escrever; mas, de igual modo, alfabetizado política e culturalmente, para não dizer ideologicamente, como tantas vezes sucedeu no Portugal revolucionário.
Imprimiram-se então milhares de títulos, muitos dos quais ensaios efémeros e de ocasião, outros puramente panfletários. Ainda assim, todos eles exprimiam, da parte de quem os comprava, uma ansiosa procura de informação ou literacia política. Houve também um inusitado surto de livros libidinosos e publicações pornográficas, mas isso faz parte do anedotário de Abril e é tão-só matéria de interesse para historiadores voyeuristas ou sociólogos dos costumes.
A ficção, essa, ressentiu-se da liberdade alcançada repentinamente, após anos de censura e negrume. Como já foi notado por diversos observadores, com destaque para Eduardo Lourenço, as letras portuguesas tiveram dificuldade em adaptar-se ao pós-25 de Abril, habituadas que estavam a sobreviver numa escrita cifrada, tendo por horizonte um inimigo que, uma vez desaparecido, criou um vazio à criação e à inventividade literárias, as quais só recuperariam fôlego em finais da década de 1970 e nos alvores do decénio seguinte. Em contrapartida, e como se disse, os ensaios políticos e as traduções de livros estrangeiros “de não-ficção” conheceram um período frenético e movimentadíssimo, verdadeiramente revolucionário, sobretudo em termos quantitativos, tal foi o número assombroso de títulos que se publicaram após o 25 de Abril. Da Cuba de Castro à Roménia de Ceausescu, com paragem técnica na Albânia de Enver Hoxha e destino final na China maoista, o inventário bibliográfico desses anos pode hoje ser feito às terças e aos sábados, na Feira da Ladra.
Passadas mais de quatro décadas sobre a revolução de Abril, o panorama editorial português não é particularmente auspicioso nem cumpre as esperanças de democratização do saber sonhadas há 40 anos. Existe atualmente o digital, é certo, e com ele a eterna questão de saber se o conhecimento transmitido por essa via prejudica, ou não, os hábitos de leitura e o contacto com os livros (a resposta é afirmativa; sim, prejudica, e muito). Apesar da espantosa disseminação do conhecimento trazida pela Internet, avolumam-se sinais de preocupação. Sintomas há muito diagnosticados mas com tendência para agravamento recente e crescente: a crise da imprensa escrita e o declínio dos leitores de jornais em formato papel, o encerramento sucessivo e em cadência acelerada de inúmeras e antigas livrarias, as agruras sentidas no quotidiano das pequenas editoras, a gritante falta de qualidade de muito do que se edita e publica, entre manuais de autoajuda e lições de “empreendedorismo”, passando por romances históricos ou revivalistas geralmente penosos.
Nada disto decorre de um suposto, mas falso, desinteresse dos portugueses pelos livros e a leitura. O facto de, em menos de nove anos de atividade, a Fundação Francisco Manuel dos Santos ter colocado mais de um milhão de livros nas mãos dos portugueses é, crê-se, uma razão de esperança para os que acreditam ser possível inverter um processo que, se não for travado agora, terá a breve trecho consequências culturais, sociais, mas também – ou sobretudo – políticas (a propósito, quantos e que livros terá lido Donald Trump em toda a sua vida tremenda?). À semelhança de um milhão de livros nas mãos dos portugueses, o número impressionante dos que diariamente consultam a Pordata – Base de Dados do Portugal Contemporâneo demonstra que existe, hoje como há 40 anos, um interesse objetivo dos cidadãos em obter informação séria e credível, produzida e difundida livremente. Na era das fake news e de novas e mais dissimuladas formas de ditadura, a batalha pela qualidade da informação é uma exigência de democracia e um imperativo de liberdade. E o 25 de Abril, e muito bem, é também o direito fundamental, inalienável, de proclamar banalidades e lugares-comuns como os que acabou de ler.
(Artigo publicado na VISÃO 1311, de 16 de abril de 2018)