O meu estado natural é a preguiça extrema. Estou bem sentado, inerte, numa letargia fossilizante. Sempre fui assim. Nunca gostei de nada na vida que implicasse atividade física. Nunca tive dentro de mim nem sequer a mínima onça de sangue competitivo. Os meus pais puseram-me primeiro no karaté e depois no ténis. Nesta última modalidade, certa vez dei por mim inscrito num torneio chamado “Sport Goofy”, e no primeiro embate calhou-me um amigo meu, o Gonçalo. Perdi 9-0/9-0 no primeiro (e único) jogo que joguei nessa competição e nem sequer sabia que os sets iam até aos 9, achava que iam até aos 6 como nos jogos que davam na Eurosport. Seis inteirinhos jogos extra da mais básica das humilhações. Toda a minha carreira tenística foi passada sozinho num canto a bater bolas contra a parede, numa categoria inventada só para mim, batizada à minha medida de “aperfeiçoamento”. Hoje em dia corro, arrasto- -me meio desengonçado pela marginal afora, ir e vir, e corro mais de dez quilómetros por dia. Tanto andei que consigo, nem sequer fico cansado. Mas não entro em maratonas, nem meias-maratonas, nem provas, nem nada que remeta para competição. Acho que ia começar a ver tudo branco ao fim de dois quilómetros, a ideia de competição suga-me a alma. Ter de estar na linha da partida a uma determinada hora certa já seria o suficiente para achar que tinha comido demais (ou de menos) ao pequeno-almoço. Quando corro, levo a cabo uma atividade mental, espiritual, e não propriamente uma atividade física. Corro para manter a linha, mas a linha de raciocínio. Correr é o que me ajuda a não pensar, a desconcentrar-me o quanto baste para que as ideias se desenhem na minha cabeça com mais nitidez e menos resistência por parte dos meus neurónios duros. Mas mal chego a casa volto a fossilizar, a transformar-me num berlinde rombo todo feito de mármore. Sou daquelas pessoas que emitem um rugido de urso ao acordar dum longo e duro inverno de cada vez que a vida as chama e se têm de soerguer do seu catre de monge. A alma estala-se- -me como um móvel de casa duma avó. Para mim, a tragédia da vida é o ter de vivê-la, os entretantos, as idas, as vindas, o ter de fazer as coisas. Os móveis do IKEA, as idas ao correio, os impressos, as filas de espera, o ter de estacionar, os jantares em casas de pessoas. Nesses entretantos, que é onde a vida mora, salta-me sempre a ideia do Bernardo Soares de que “a minha vida é como se me batessem com ela”. É isso que me vai arredondando, aviltando as arestas da alma: as pequenas solicitações da vida, as idas ao Leroy Merlin, as multas de estacionamento, a resignação burra aos procedimentos, a pequena grande humilhação do dia a dia, o ter de ir reclamar que o brinquedo vinha sem pilhas (na caixa dizia que vinha com pilhas), deixar a carteira no banco de trás dum Uber, clicar onde diz “entrar em contacto com o condutor”, não conseguir, desistir, ter de ir renovar os cartões todos. Ligar para o banco. Desistir, andar ilegal durante meses. Até que se aproxima uma ida ao estrangeiro e ir à última a correr para a loja do cidadão, pedir urgência máxima, ligar para a embaixada a dizer que é por causa dum concerto para as comunidades portuguesas, a nossa cultura, a nossa língua, o nosso povo, a nossa intrépida alma lusitana de viajante, vir de lá com um impresso especial. Invejar as pessoas que tocam afinado o seu instrumento na admirável orquestra da vida e jurar que para a próxima se faz tudo direitinho e com tempo, e lembrar-me de que na escola era igual, até outubro a palavra “sumário” vinha sublinhada a vermelho com régua, a data e o local tudo direitinho, letra redondinha, Porto, 4 de outubro de 1988, e que ali a partir de novembro era o descalabro até junho, os cadernos, o estojo, as folhas furadas pela parte azul da borracha, a vida era como se me batessem com ela.
(Crónica publicada na VISÃO 1309 de 5 de abril)