A maioria esmagadora dos/das constitucionalistas considera, e bem, que a despenalização da eutanásia, desde que em circunstâncias específicas, não é inconstitucional. Há mesmo quem defenda que não permitir, em caso algum, a eutanásia é inconstitucional. Ou seja, se pusermos de lado a minoria de vozes que também tinha por inconstitucional a despenalização da IVG até às dez semanas, é pacífico que o legislador tem margem de liberdade para regular as condições especiais para a prática da eutanásia não punível.
Temos doutrina e jurisprudência de sobra para sabermos que a Constituição (CRP) não consagra direitos ou valores absolutos. No que toca à vida, evidentemente ela tem um valor objetivo e um valor subjetivo. A eutanásia resulta de uma ponderação de direitos e valores constitucionais (vida humana, dignidade da pessoa humana, autonomia individual). Atualmente, a vida humana já é objeto de restrições no nosso ordenamento jurídico. São exemplos disso todos os casos em que a IVG é permitida ou os casos de exclusão da ilicitude previstos no Código Penal (legítima defesa). A eutanásia será mais um caso de exclusão da ilicitude. Por outro lado, o Código Penal não dá uma proteção uniforme à vida humana. O homicídio conhece penas totalmente diferentes se for, por exemplo, um homicídio simples ou um homicídio a pedido da vítima.
Todos os direitos fundamentais – e, portanto, também o direito à vida – gozam de um dever de proteção por parte do Estado. Este dever de proteção significa que o Estado tem de salvaguardar os direitos fundamentais de agressões por parte de terceiros e tem de promover os direitos fundamentais, para que estes sejam universais. No caso da eutanásia, coloca-se a questão de saber se o Estado tem o dever de proteção do direito à vida contra a vontade do próprio.
O Estado não pode ser paternalista e interferir nos planos de vida de cada pessoa, impondo um modelo único de “pessoa”. O Estado não pode rejeitar a autonomia das pessoas para fazerem as suas escolhas pessoais de acordo com os seus valores, ou, caso contrário, teríamos uma conceção moral dominante imposta ao resto da sociedade.
Ora, quando se pretende regular as situações especiais em que a prática da eutanásia não é punível, o que se está a fazer é a reconhecer o que decorre dos valores e princípios constitucionais. Isto é, não está em causa um desrespeito da vida por parte do Estado, porque se parte do princípio de que é o próprio sujeito autónomo que deseja a eutanásia, sujeito esse que, tendo liberdade para tomar decisões vitais ao longo da vida sem possibilidade de interferência por parte do Estado, também tem liberdade para ter um espaço legalmente reconhecido de decisão quanto à sua própria morte.
Escrevo “um espaço” e não “todo o espaço” propositadamente. O Adolfo Mesquita Nunes (AMN), tal como eu, é um defensor da liberdade negativa. Acontece que AMN dá o salto lógico para concluir que o suicídio é um ato puro de liberdade enquanto que a eutanásia não o é, uma vez que implica a intervenção de profissionais de saúde.
Vamos lá ver. A pessoa que pede a eutanásia está numa situação tal de doença fatal e de sofrimento que precisa, justamente, de ajuda para concretizar um ato que não deixa de ser absolutamente uma decisão individual.
Por outro lado, a CRP tem parâmetros de constitucionalidade que são para aqui chamados – o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, este último fundador da República – que nos obrigam a discutir a eutanásia sem ser no quadro da liberdade negativa. É que o Estado, tendo o dever de proteger a vida humana, deixa de a proteger em circunstâncias muito concretas – as tais em que a eutanásia venha a ser permitida.
Para que isto seja conforme à CRP, é essencial que
a decisão seja efetivamente autónoma, livre, atual e esclarecida. Respeita-se a tal autonomia das pessoas que o Adolfo e eu defendemos, mas tem de se assegurar que há, efetivamente, autonomia.
Tendo em conta aqueles parâmetros constitucionais, o legislador não pode ser indiferente às circunstâncias concretas em que a eutanásia é possível, sob pena de violar a lei fundamental.
É que se entendo que a minha decisão sobre a minha morte entra naquele tipo de decisões autónomas nas quais o Estado não deve interferir, do que estamos a falar, no caso da eutanásia, é de alguém estar numa situação de debilidade tal que precisa de auxílio para exercer a sua decisão, sendo o auxilio despenalizado. Para que a intervenção, a pedido, de profissionais de saúde seja despenalizada sem risco de inconstitucionalidade por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, a lei tem de ser rigorosa, ainda que recorrendo inevitavelmente a conceitos indeterminados, mas determináveis.
Gostaria de perguntar ao AMN se entende que o nosso Estado de direito deve tolerar situações como a do “canibal de Roterdão”. Como sabemos, foi um caso em que houve sexo e canibalismo subsequente com total liberdade por parte dos envolvidos. O caso foi, de resto, trazido à baila pelo Professor Jorge Reis Novais na sua audição no Parlamento. Para quem entenda que nestas matérias o que está em causa é a “liberdade negativa”, porque não permitir casos como o referido se as pessoas envolvidas querem efetivamente sujeitar-se a isso?
É que ao contrário do que AMN argumenta, a questão não é só de liberdade, mas de dignidade da pessoa humana, na sua dimensão de “dignidade como integridade” (ide ler o livro do Jorge Reis Novais sobre DPH). Evidentemente, o caso do canibal de Roterdão é intolerável à luz da dimensão referida da DPH. É a dignidade intrínseca da pessoa humana que impossibilita o Estado de direito de acolher tais manifestações de vontade.
Na eutanásia, tal como ela está prevista nos projetos apresentados e no projeto do PS em elaboração, a condição humana não é desrespeitada. Pelo contrário, a minha autonomia e a tua autonomia são respeitadas enquanto dimensões da DPH, com requisitos claros, tirando partido de estarmos a legislar depois de outros países.
A decisão de abreviar uma morte certa é da pessoa, integra a sua liberdade e a sua autonomia, o processo é conduzido pela própria pessoa, numa lei que tem de ser rigorosa na salvaguarda, precisamente, dessa autonomia, porque o pedido é feito por alguém fragilizado.
É disso que se trata.
(Artigo publicdo na VISÃO 1308, de 29 de março de 2018)