E se houvesse um Serviço Nacional de Justiça? E se tivesse havido alguém com o desassombramento e a lucidez de António Arnaut e com a sua capacidade de enfrentar todos os tantos interesses instalados – ele na Medicina, esse outro alguém na Justiça – e se tivesse criado um serviço público de acesso verdadeiramente universal e de democratização efetiva da aplicação da Justiça, pondo assim em primeiro lugar a Constituição da República e não os poderes económicos e corporativos?
A coisa soa a utópico. Também soava a utópico quando Arnaut assinou o despacho que fez criar o SNS. Agora como então, a convicção generalizada de que um verdadeiro serviço público é uma utopia é o outro lado da aceitação de que a Justiça é por definição cara, seletiva e serve aos poderosos e não aos pobres. O memorando com a Troika exprimia isso mesmo, ao pôr a ênfase numa natureza instrumental da Justiça para o mundo dos negócios e na necessidade de uma reforma da Justiça que agilizasse as áreas das execuções e dos tempos de decisão para as empresas. A coisa ganhou raízes e o recente Pacto para a Justiça reitera esse entendimento, ao exibir uma noção de “justiça económica” – uma das quatro áreas pactuadas – cingida a relações comerciais e sem vestígio de abertura à proteção dos mais fracos.
Um Serviço Nacional de Justiça, como o Serviço Nacional de Saúde, haveria de arrancar de uma noção precisa do universo dos arredados do bem público Justiça e das mudanças a operar na oferta desse bem público para ele ser verdadeiramente público. Por isso, um Serviço Nacional de Justiça consagraria um princípio de gratuitidade no acesso, assentaria num mapa de tribunais e de outras estruturas, como prisões ou Julgados de Paz, guiado por um imperativo de real proximidade (como sucede com as unidades de saúde familiar) e acolheria formas de discriminação positiva a favor dos mais pobres e dos mais discriminados. Um Serviço Nacional de Justiça seria guerreado pelos interesses poderosos e, tal como no Serviço Nacional de Saúde, essa guerra seria feita em nome das bandeiras liberais da ‘liberdade de escolha’ e da ‘flexibilidade’. Na Justiça como na Saúde, os inimigos do serviço público ensaiariam estratégias várias de privatização – se nesta se consolidaram as parcerias público-privado, na Justiça os privatizadores bater-se-iam pela desjudicialização e pelo alargamento da arbitragem e legitimariam a diminuição dos direitos e das garantias dos mais fracos com o álibi da ‘simplificação de procedimentos’. Os defensores do Serviço Nacional de Justiça saberiam ver nessas estratégias retóricas uma ameaça de esvaziamento do serviço público e saberiam responder-lhe com o apuramento dos meios humanos (com uma formação larga, multidisciplinar e socialmente atenta), com a sua motivação para o serviço público (dotando-os de estatutos profissionais à altura da importância social da sua função) e com meios técnicos adequados, ainda que sempre com a noção de que uma palavra ou um gesto dão muito mais consistência a um bem público do que o anonimato de um computador.
Se houvesse um Serviço Nacional de Justiça, a jurisdição cível não estaria colonizada por uma dúzia de operadores económicos que fazem dos tribunais um departamento da sua atividade empresarial e não se conceberia sequer que a resposta a um pedido de apoio judiciário tardasse sete ou oito meses arriscando-se a já não ter qualquer utilidade quando chegasse. Se houvesse um Serviço Nacional de Justiça, seria absolutamente inaceitável o desinvestimento na reinserção social e a manutenção do sistema prisional como um espaço incapaz de cumprir a sua função de construção de projetos de vida socialmente válidos.
Há seguramente ajustamentos à Justiça que temos que a façam funcionar melhor. Mas só a ambição de construir um Serviço Nacional de Justiça a assumirá como a Constituição a percebe: como um bem público e democrático.
(Artigo publicado na VISÃO 1305, de 8 de março de 2018)