Era previsível que fosse assim. Acabou por acontecer por causa de uma tragédia mas, depois das últimas legislativas, era quase certo que assim seria. Mas regressemos ao princípio que é por onde devem começar todas as histórias.
Portugal, até por força das várias maiorias absolutas que teve, tem vivido num regime político a que já chamaram parlamentarismo de primeiro-ministro. O governo emana do Parlamento é certo, mas autonomiza-se. Com maioria absoluta ganha mesmo cartas de alforria. O centro da vida política tem estado claramente em S. Bento.
Acontece que, para grande irritação da direita, a geringonça acabou com três mitos duradouros e mudou a configuração deste sistema. Sem a emergência de uma maioria absoluta tradicional acabou, desde logo, com o pacto não escrito do arco da governação. E ao incluir Bloco e PCP no leque das opções governativas aceitáveis, a nova solução de governo deu uma nova plasticidade ao sistema. Doravante é obrigatório pensar em todas as soluções, sobretudo nas mais improváveis. Por outro lado, e daqui em diante, a todos parecerá normal também que uma solução de governo seja encabeçada por um partido que – objetivamente – não ganhou eleições mas que soube encontrar no quadro parlamentar uma solução de suporte maioritária. Finalmente, e mais relevante, parece ter caído o mito da ingovernabilidade fora do quadro de maiorias absolutas.
Em consequência de todas estas novidades, o leque e a quantidade das opções aumentam e, com elas, o poder desequilibra-se a favor do parlamento. Assistimos, por outras palavras, a uma clara parlamentarização do nosso sistema político.
Mas a história não acaba aqui. Portugal, por mais que tenha visto reforçar-se a dimensão parlamentar do seu sistema político, não deixa de ter um Presidente da República eleito por sufrágio universal. No caso muito particular em apreço, tem um Presidente eleito depois de uma campanha obsessivamente independente e que tem conhecido taxas de popularidade nunca vistas. Tudo, como se sabe, fatores adicionais de legitimação política.
Acresce que a nova solução governativa, apesar de ter provado a sua resiliência e a sua eficácia, não tem naturalmente a solidez de uma maioria absoluta. Há ameaças de brechas à esquerda, há (com menor plausibilidade) hipóteses de rearranjos maioritários à direita (sobretudo agora, com uma nova liderança à espreita no PSD). Tudo isto, pelo menos em teoria, no quadro da mesma legislatura. Assim as várias geringonças vão contando com a confiança do Presidente. Pelo que, lentamente, o Presidente magistrado de influência passa a agir, cada vez mais, como Presidente árbitro.
E este é a segunda e paradoxal deriva do nosso sistema político. Faz-se simultaneamente mais parlamentar e mais presidencial. Provavelmente faz-se mais próximo até do ideal que o inspirou. Mas o que é certo é que é o centro que se esvazia. É o executivo e o seu chefe que, na nova arquitetura de influência, perdem poder, quer para o parlamento, quer para o Presidente. Não auguro aliás grande vida ao tradicional parlamentarismo de primeiro-ministro. A segunda parte desta legislatura ilustrará na perfeição esta tese. Na sequência das tragédias que se abateram sobre o País teremos um primeiro-ministro amarrado ao parlamento para negociar a sua sobrevivência anual mas tê-lo-emos agora também sob a tutela estreita do Presidente da República. De Belém virão regras, virão condições, virão, como ficou à vista, exigências muito específicas.
Mas o meu ponto essencial é este. Tudo isto acontece, não tanto por causa dos incêndios mas porque a deriva parlamentar da geringonça pedia o contrapeso natural do presidencialismo. O sistema moveu-se por causa da tragédia. Mas estava condenado a mover-se.
(Artigo publicado na VISÃO 1286, de 26 de outubro de 2017)