Era uma vez um imperador que conquistou quase tudo o que havia para conquistar. Desde as fronteiras do Egipto à muralha da China, desde os gelos da Sibéria às monções da Índia, o seu império crescia e prosperava sobre o sangue dos inimigos derrotados. Tamerlão era o nome deste imperador e Samarcanda era a sua capital.” O guia, Ibraim, faz uma pausa. Na longa descrição que tem vindo a fazer da história de Samarcanda, deixou habilmente a parte de Tamerlão para agora. Sabe que recupera assim a atenção dos seus ouvintes, diluída entretanto no excesso de arquitectura e povo de Samarcanda.
“Tamerlão nasceu numa outra cidade, Shakhrisabz, mas em 1370 elegeu esta para centro do seu império. Na altura, Samarcanda era uma imensa ruína, o resultado da passagem do exército de Gengis Khan, cento e cinquenta anos antes. Mas”, sugere Ibraim com a teatralidade de quem repete esta observação regularmente a turistas de todo o mundo “o que são cento e cinquenta anos de obliteração na vida de uma cidade com três mil?”
Chegamos à mesquita de Bibi-Khanyum, assim chamada em homenagem à esposa de Tamerlão. Foi a própria Bibi-Khanyum que ordenou a sua construção, às escondidas de Tamerlão durante uma das suas longas ausências da capital, para surpreender o imperador no regresso com tão magnífico presente. Ibraim altera a voz para um registo dramático. “O arquitecto da mesquita, no entanto, apaixonou-se loucamente pela imperatriz, e recusava-se a continuar a obra se não tivesse permissão para a beijar. Incomodada, a imperatriz ofereceu-lhe quarenta concubinas e ordenou ao arquitecto que escolhesse a mais bonita e que não pensasse mais na imperatriz. Para realçar a ordem, mandou cozer quarenta ovos e pintar todos de modo diferente. Chamou o arquitecto e disse: Vê, as mulheres são como estes ovos: todos diferentes por fora, mas quando abres a casca são todos iguais por dentro. Por isso, não te fixes em nenhuma mulher em especial.
O arquitecto saiu humilhado e perplexo, mas no dia seguinte voltou com quarenta garrafas de vidro. Disse à imperatriz: Vês, aparentemente todas estas garrafas têm água transparente, mas uma delas tem vinho branco. Se eu beber trinta e nove não vou notar a diferença. Mas quando beber a que tem vinho branco a minha boca vai explodir de ardor. Assim são todas as mulheres excepto aquela que não tem igual no mundo aos olhos do seu amante.”
Ibraim faz uma pausa. “O arquitecto conquistou a imperatriz. E o imperador descobriu a relação entre os dois. Foram condenados à morte. Seriam atirados do alto do minarete. A imperatriz arranjou -se, penteou-se, vestiu-se com os seus melhores vestidos. Quando se precipitou no vazio, os vestidos insuflaram como um pára-quedas e desceu suavemente até aterrar aos pés de Tamerlão, que lhe perdoou a infidelidade. O arquitecto, que conhecia o minarete como se fosse o seu próprio filho, ao ser atirado agarrou-se às fissuras e irregularidades da fachada e foi descendo como um alpinista pela parede até chegar a salvo ao chão, onde fugiu para a montanha nunca mais foi encontrado.”
O grupo de turistas mantém-se em silêncio, suspenso na conclusão iminente: “E é por isso que podemos dizer”, remata Ibraim, “que o pára-quedas e o alpinismo foram inventados em Samarcanda no século XIV”.
Silêncio. Ibraim retoma o passeio, novo quarteirão, novo monumento, os turistas seguem-no perplexos e baralhados sem saber o que pensar. Nessa noite, ao jantar, questiono Ibraim. Estavas a brincar. Encolhe os ombros. Quem sabe. Rota da Seda, Alexandre Magno, Gengis Khan, Marco Polo. Tamerlão. Tudo aconteceu aqui em Samarcanda. Tudo pode ter acontecido. Come mais um ovo cozido, Gonçalo, e bebe mais um copo de vinho branco.