Foi um ano implacável e a ceifa foi danada: Freddy Mercury, Miles Davis, Gainsbourg, Stan Getz. Todos morreram nesse ano. Mas 1991 ficará para a história como o ano em que emergiram Kurt Cobain e Eddie Vedder. O ano do Nevermind e do Ten. O ano do Blood Sugar Sex Magik dos Red Hot Chili Peppers e do Out of Time dos REM. A cultura pop estava tão ocupada a renovar o seu stock de protagonistas que ninguém se lembrou de acusar 1991 de “serial killer” de estrelas de música. Mas, desde então, tem vindo a comer-se a ela própria. A serpente da indústria começou a mordiscar a própria cauda. E assim de repente dei por mim em 2016 a comprar cromos da Patrulha Pata com o meu filho e, junto às caixas, as revistas da especialidade. Na capa da Blitz, os Metallica. Na Q, os Green Day. Na Rolling Stone, o Harrison Ford. Na MOJO, os REM. No NME, o John Lennon. Em dezembro do mesmíssimo 1991, eu comprei a minha primeira Guitar World, trazia os Megadeth na capa. E na de dezembro de 2016? Bob Weir, o septuagenário guitarrista dos Grateful Dead. Pensei no snake, aquele jogo que vinha nos Nokias, e em quando a serpente virava para dentro, num movimento autofágico de fim à vista.
Temos também o caso da Fender, a maior fabricante de guitarras do mundo. A história desta empresa confunde-se com a história da música popular de que aqui se fala. A sua mais recente inovação é o relançamento de alguns dos seus modelos clássicos, vendidos a alto preço. As guitarras Vintage Relic vêm “coçadas” da fábrica, lascadas e riscadas. Com “patine”. São mais caras por isso. Em que outro produto se imagina tal coisa? Um carro riscado de fábrica? Uma máquina de secar esmurrada na montra da Worten? Claro que existem jeans rasgados a sair das tecelagens, mas isso é porque a moda sempre seguiu a pop. O diagnóstico é definitivo: a pop devorou-se a ela própria e é incapaz de gerar novas figuras de proa. Virou-se para dentro. Virou-se para trás por falta de horizonte à vista. Em 2016 podemos falar da sua morte em sentido lato: é o reflexo natural do esvaziamento da expressão que lhe dá o nome: a popularidade. Nada a lamentar. Hoje a informação é ampla, as suas fontes são inesgotáveis, os telemóveis dão acesso à Biblioteca de Alexandria dos nossos tempos e isso é uma coisa boa. Não existem mais Michael Jacksons nas latas da Pepsi do mundo inteiro. O “mainstream” acabou. O talento não acabou nem está em risco, as atenções é que andam dispersas. No ano da morte de Leonard Cohen, Prince e David Bowie, o Justin Bieber passeou-se incógnito por Cascais e a Rhianna foi expulsa de uma discoteca em Londres por um segurança que falhou em reconhecer a estrela (que ocupa o lugar de sumo pontífice da pop atual) numa noite em que esta se estaria a comportar de acordo com o estatuto que tradicionalmente mereceria. No auge da sua popularidade, o António Zambujo foi impedido por um segurança de subir ao palco do próprio concerto. É esta a nova pop sem popularidade. Hoje, a pop é dominada por nomes que emergiram há 40, 50 anos, e isso é algo de inédito na sua história. É como se, quando os Beatles rebentaram, os cabeças de cartaz ainda fossem a Bessie Smith, o Al Jolson e o Bing Crosby. Quando os Stones e os U2 desaparecerem, quem ocupará os seus lugares? Numa pop dominada pelas reedições e pelas digressões de reunião de antigas bandas, é seguro adivinhar: ninguém.
No ano passado, eu ia sempre de uber para o coliseu, quando arranjei por lá um emprego fixo, chamemos-lhe assim. A minha mulher metia conversa com os motoristas, numa rápida sondagem para aferir os índices de popularidade do marido: nenhum tinha ouvido falar de mim. É o sucesso sem fama. Os resultados foram bastante humilhantes para as minhas aspirações de gente famosa. E a amostra até foi representativa: é que ainda foram 28 os inquiridos.
(Artigo publicado na VISÃO 1245, de 12 de janeiro)