É normal ver Edward Snowden, num filme de Oliver Stone, a pensar em tapar a webcam do portátil para não ser espiado. Bastante menos normal é ver o diretor do FBI James Comey (que se pudesse, prenderia Snowden), a recomendar aos utilizadores que façam o mesmo. O natural seria cada um usar apenas as webcams que quiser e quando quiser. Só que elas já estão em todo o lado. Há ou não uma conspiração de webcams? Não, não há. Até porque as webcams ainda não têm a inteligência necessária para conspirar.
Um dia talvez não muito longínquo, já será correto falar dessa ameaça. Quando as câmaras deixarem de apenas filmar e passarem a saber quem estão a filmar. Já se faz em vários aeroportos do mundo que reconhecem as pessoas através de imagens captadas por câmaras que são associadas a um passaporte eletrónico. Mas esqueça-se o passaporte eletrónico. O que impede uma marca de telemóveis de filmar o consumidor no dia-a-dia e de o reconhecer automaticamente através das características únicas do rosto? A lei pode não permitir, mas tecnicamente, já é possível. E o que impede uma marca de telemóveis de pegar nessas imagens e as vender a uma empresa especializada na comercialização de bases de dados ou até a um estado totalitário que pretenda identificar todas as pessoas que entram no respetivo território? A lei não deixa muita margem de manobra sobre este caso, mas tecnicamente já é possível. O que significa que, com diferentes matizes, variáveis, graus e alcances, mais tarde ou mais cedo, haverá webcams que usam a inteligência para saberem o que veem. Nessa altura, a humanidade terá de se conformar com o novo papel: já não haverá versões, relatos, ou testemunhos. Basta as imagens captadas de vários ângulos pelos diferentes dispositivos dispersos aleatoriamente numa sala, num escritório, numa loja ou numa oficina.
“1984”, obra-prima de George Orwell e ponto alto da literatura anti-totalitarismo, pode ser exemplar do ponto de vista político, mas é uma brincadeira de meninos quando se faz uma comparação com o potencial tecnológico dos dias de hoje (o que é natural, tendo em conta que o livro foi escrito em 1949). “Minority Report”, o filme que Steven Spielberg produziu a partir de um livro futurista que Philip K. Dick escreveu em 1956, também está longe de ser certeiro nas previsões tecnológicas, mesmo sem beliscar as pretensões estéticas e literárias. Com uma câmara inteligente pronta a operar, não será necessário nenhum voyeur pan-ótico ou nenhum relatório minoritário: o sistema, seja ela qual for, e tenha o patrão ou dono que tiver, acabará por aprender a reconhecer não só pessoas e objetos como também o que as pessoas fazem com os objetos – ou com outras pessoas que os rodeiam. E se num primeiro tempo será fácil ao sistema deduzir que alguém que levanta a mão para outra pessoa está em vias de dar uma bofetada, não custa a crer que, pela lei da estatística ou apenas da repetição, rapidamente esse sistema terá a capacidade de prever, com alguma margem de erro marginal, o que cada pessoa vai fazer a cada momento – nalguns casos irá mesmo antecipar-se ao pensamento da própria pessoa. E, sim, até mesmo na casa de banho isso pode acontecer.
A primeira coisa que se pode dizer é: muitas vidas serão salvas e muita gente será poupada a percalços, casos de justiça, prejuízos, desgostos, e arrependimentos. E a segunda coisa que se pode dizer é: muitas vidas serão espiadas e física ou filosoficamente destruídas pelo fim da imprevisibilidade, ou apenas porque executam gestos rotineiros de forma diferente da maioria.
No filme “Matrix” alguém pergunta ao herói Neo se prefere um comprimido de uma determinada cor para conhecer a realidade tal como ela é, ou se prefere tomar um comprimido de uma cor alternativa para permanecer na realidade imaginária que é criada por software, e a maioria dos humanos toma por verdadeira, quando na verdade vive numa redoma que lhes extrai a energia. Neo, a bem do enredo do filme e da liberdade da humanidade, pede o comprimido que lhe dá acesso à vida em cru, sem realidades imaginárias à mistura. Mesmo o mais crédulo dos otimistas terá dificuldade em acreditar que alguma vez venha a ser inventado um comprimido do género… mas se for inventado, há uma grande probabilidade de uma boa parte da humanidade não o querer tomar. Ou simplesmente não querer saber.
Desde os anos 1970 que existem vírus informáticos. Os computadores evoluíram tendo por companhia os tais vírus. Não consta que alguma vez um utilizador de computador tenha desejado voltar aos tempos em que se trabalhava com lápis e papel, depois de o computador ser atacado por vírus ou hackers. Pelo que se percebe facilmente o que acontece com os telemóveis/smartphones: todos eles podem ser usados para aceder à Internet e boa parte está sujeita às mais variadas ameaças. E mesmo sabendo deste cenário, muitos utilizadores continuam a atuar como se nada fosse – apesar deste comportamento pôr em causa o dispositivo com mais informação profissional, pessoal e íntima da atualidade. O “tal” dispositivo que também pode ser usado para aceder a contas bancárias, conhecer percursos e rotinas, identificar amigos e familiares, e lançar esquemas fraudulentos junto dos contactos que estão na agenda.
Segundo um estudo recente da Kaspersky só 53% dos utilizadores usam aplicações de segurança para protegerem os respetivos smartphones. Nos tablets o número sobe para 57%. Ambos indicadores contrastam com os 88% estimados para as proteções dos computadores. O estudo, que tem por base as respostas obtidas junto de 12 mil inquiridos de 21 países, apenas surpreende pelo otimismo com que as pessoas encaram o quotidiano. Até ao dia em que lhes acontece alguma coisa ao telemóvel. Ou que descobrem que um qualquer hacker tem acesso à câmara do terminal. O mesmo cenário pode ser aplicado na Internet das Coisas: um dia, um qualquer hacker aproveita o batalhão de máquinas, gadgets, robôs, ou ferramentas industriais que permanecem conectados, como se tivessem superpoderes ou os males da Internet não os afetassem como afetam os outros. Na sexta-feira, milhares de webcams foram usadas como veículo para um ataque que acabou travar sites de grande dimensão como Netflix, Twitter ou Amazon. No final, descobriu-se que tudo se terá devido às webcams da fabricante Hangzhou Xiongmai, que não tardou a emitir uma ordem de recolha das câmaras e a responsabilizar os consumidores por não mudarem as passwords de origem.
O caso acabou por ficar sanado ao cabo de algumas horas – e só espanta que ainda não tenha havido um ataque similar de maiores proporções. Nessa altura, não bastará colocar um adesivo à frente da lente para resolver o problema. E seguramente não aparecerá ninguém com um comprimido milagroso.