O meu avô tinha uma casa grande em Benfica, com um grande jardim, dois lagos, imensos canteiros, árvores, um segundo piso, mais elevado, onde ficavam as capoeiras e o pombal e um terceiro piso que era a quinta, árvores de fruto, legumes, o chiqueiro dos porcos e um celeiro repleto de tralha variada. Chegavam as férias e eu mudava-me para lá porque o meu avô gostava muito de mim, levava-me bolachas à cama, fazia-me festas no pescoço, tratava-me, à maneira do Brasil, de onde a família dele vinha, por “o meu morgado” e eu era o morgado de facto, filho mais velho do filho mais velho, herdeiro do seu apelido e das suas tradições. O problema do herdeiro consistia em que não tinha nada a ver com ele excepto o nome, António Lobo Antunes. Ele era moreno, eu loiro, era forte e eu magrizela, corajoso e eu mariquinhas, monárquico e eu estava-me nas tintas para reis e assim por diante. Obrigava-me a andar a cavalo, bichos que me apavoravam, nunca fui sociável nem bem disposto, ao contrário dele, mas adorava-o. Apesar destas diferenças todas foi uma das duas ou três pessoas que mais amor me deram na vida e o meu afecto, tantos anos depois da sua morte, permanece intacto. Salazarista, monárquico, ferozmente católico tinha para comigo uma capacidade de tolerância sem limites. Comprava cigarros em pacotes de dez maços, que eu ia roubando para fumar com os filhos do caseiro e, como nunca me ralhou por isso, achava que era estúpido e nem contas de somar e diminuir sabia fazer. Só muito mais tarde entendi que não falava no tabaco para não ter que se zangar. Tinha dois irmãos e duas irmãs, as irmãs eram a tia Isabel, que era uma santa, e a tia Leopoldina, Leopoldina em homenagem à imperatriz, que era uma chata. Os dois irmãos chamavam-se tio João e tio Joaquim. Morreram ambos solteiros, de maneira que o Lobo Antunes acabou por escorregar para mim. O tio João era um borguista que convenceu os pais a mandarem-no estudar Comércio para Paris, onde se dedicou com entusiasmo às francesas, trabalhava num banco durante o dia e no Parque Mayer durante a noite, onde era célebre pelas suas pateadas e apartes, nunca casou e, como o meu avô dizia, acabou nas mãos da cozinheira como o peru. Aliás, a propósito de mortes e perus, morreram uma quantidade de tias do Brasil em Novembro e Dezembro de um ano qualquer
(estavam quase todas a viver em Portugal na altura)
o meu avô enterrou-as na mesma agência funerária e, pelo Natal, recebeu de presente, da agência, um casal de perus agradecido. O tio Joaquim era médico pela Universidade do Rio de Janeiro, também solteiro, a partir de certa altura começou a trabalhar de doutor em paquetes, vinha a Lisboa de vez quando, onde era recebido em festa pela família, trazia doces do Brasil para todos e deixava sempre, em casa do meu avô, uma quantidade de livros lidos durante as viagens. Segundo as minhas tias ia somando namoradas por todo o lado onde o navio atracava mas eu só conhecia isso por ouvires dizeres bichanados. Quanto aos livros tinham desenhado, na lombada, uma cruz a lápis vermelho ou a lápis azul, feitas não sei por quem. As cruzes encarnadas significavam que aqueles livros eram interditos às minhas tias e a mim. Claro que folheei um deles e não percebi peva, cheios de raparigas e homens entregues a actos de que eu não entendia fosse o que fosse e me pareciam esquisitos, não mencionando diálogos herméticos eriçados de frases incompreensíveis.
Benfica era, então, um subúrbio pequeno, onde toda a gente sabia quem era toda a gente e se conheciam as horas pelas pessoas que vinham nos eléctricos que, no verão, eram abertos. Uma ocasião ia eu com a minha mãe e a mãe da minha mãe num deles, a mãe da minha mãe puxou o lenço da carteira para se assoar, veio uma rabanada de vento, o lenço fugiu-lhe da mão e foi poisar na braguilha de um senhor gordo, sentado ao lado dela, que lia o jornal. A mãe da minha mãe ficou sem saber o que fazer. Sem coragem para falar ao senhor gordo no lenço, limitou-se, depois de o acotovelar de leve, a apontar-lhe a braguilha onde o lenço jazia. O senhor gordo corou a murmurar desculpas e enfiou-o dentro das calças, à pressa, com o indicador. Só posso imaginar o que terá pensado a esposa quando, à noite, ele se despiu para dormir no quarto do casal e deu com o lenço de uma estranha enfiado nas cuecas.
Benfica, como disse, era um suburbiozito onde toda a gente topava toda a gente. Diante da igreja havia a pastelaria Paraíso e, logo ao lado, uma loja de penhores. A minha avó Galhó, tia da minha mãe, levava o marido à igreja à missa do meio-dia e ele, em lugar de Deus, preferia o Paraíso. Perguntado porque faltava aos seus deveres cristãos respondia:
– Não preciso porque já estou no Paraíso, que é mais fresco e tem cerveja.
Mas onde eu queria chegar era à história da cigarreira de prata que descobri num baú do celeiro, toda triques, de certeza caríssima, com uma dedicatória para o meu tio Joaquim
(o tal médico dos navios)
num alemão ardente. Como eu andava mal de dinheiro para pastilhas de mentol peguei na cigarreira e fui à loja de penhores com ela, devia ter uns doze ou treze anos. Expliquei ao empregado
(claro que eu usava calções na altura)
que um dos meus vários negócios correra mal e necessitava de empenhar aquilo para satisfazer dívidas alimentares urgentes da minha família. O empregado ouviu–me com a maior seriedade
– Claro que sim, claro que sim
entregou-me umas moedas pela cigarreira, despediu-se
– Boa tarde, cavalheiro
respeitoso, compreensivo, amigo. Comprei uma barrigada de rebuçados no Paraíso e, de fome consolada, fui para casa dos meus avós onde estava de férias. Encontrei a minha avó a bordar na salinha dela, que me beijou sem levantar os olhos para mim. Só passados minutos dei pela cigarreira do tio Joaquim na mesinha ao lado da cadeira dela, que o empregado dos penhores lhe levou nessa mesma tarde
– O seu neto apareceu com isto lá no estabelecimento, senhora dona Eva
e a minha avó, depois de lhe agradecer, de certeza que entregou a meia dúzia de moedas das pastilhas. A minha avó não me disse uma palavra
(deixou que a cigarreira se exprimisse por ela)
eu não disse nada
(deixei que a cigarreira se exprimisse por mim)
e nunca nenhum de nós falou neste assunto. Lembro-me de nesse dia o meu avô me perguntar, já durante a fruta
– Os negócios estão a correr-te melhor, filho?
e desde então, coberto de vergonha, não tornei a entrar numa loja de penhores. Tenho ideia de que uma ocasião, ao passar pela porta, o empregado me piscar o olho a chamar-me
– Maroteco
Palavra sempre difícil de aceitar para um ricaço como eu.