‘Este livro é para si. Foi escrito a pensar em todas as pessoas que gostariam de estudar e de aprender mas que não tiveram ocasião para isso. O amigo é um deles. Suponho que é camponês ou operário, rapaz novo ou homem feito, e que já lhe sucedeu ficar a meditar sobre as razões por que acontecem certas coisas que observa”. É assim que começa o livro Física para o povo, tal como se pode ler no prefácio da primeira edição de 1968, escrito por Rómulo de Carvalho (1906-1997), professor de Física e Química, grande divulgador e historiador de ciência. Em 1968 os tempos não eram muito favoráveis nem à ciência nem à sua divulgação. A ciência exige liberdade de pensamento e, pelo seu caráter inovador, representa um desafio à autoridade. Durante o Estado Novo vários intelectuais e académicos foram proscritos e, nalguns casos, forçados ao exílio. Nessas circunstâncias Rómulo de Carvalho soube escrever de forma acessível para uma população com um grau de escolaridade que, na grande maioria dos casos, não passava da quarta classe. Conseguiu ainda criar encontros únicos entre ciência e poesia, sob o pseudónimo de António Gedeão, de que o poema Lágrima de preta é um exemplo. Nele relata o encontro com uma preta que estava a chorar, tendo-lhe pedido uma lágrima para analisar. Conclui acerca da sua composição:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Rómulo de Carvalho, como todos nós, andava a dar voltas ao Sol desde que nasceu. E a cada dia 24 de novembro completava mais uma. A data do seu aniversário é atualmente o Dia Nacional da Cultura Científica, que é “um capital que nos permite não apenas ler mas usufruir do mundo, que nos permite não apenas conhecer mas manipular as ideias produzidas pelaciência, que nos permite perceber as potencialidades e os riscos e as limitações da ciência, que nos permite relacionar e integrar os conhecimentos da ciência com outros saberes e culturas numa visão coerente e enriquecedora do mundo, que nos permite encarar a ciência sem a mínima atitude de servidão ou sequer de reverência, mas apenas com curiosidade, emoção e sentido de responsabilidade”. Esta é a definição que consta do livro Cultura Científica em Portugal, da autoria de António Granado e José Vítor Malheiros, que será lançado no próximo dia 23, em Lisboa, no quadro do Mês da Ciência, uma iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos, à volta do dia de aniversário de Rómulo de Carvalho.
Ao contrário de Rómulo de Carvalho, eu não suponho que o leitor seja camponês ou operário. E até apostaria que teve mais oportunidade de estudar e aprender do que Rómulo supunha em 1968 acerca dos seus leitores. Se, em 1970, um em cada quatro portugueses não sabia ler nem escrever, apenas 0,9% da população tinha concluído um curso superior e 60 pessoas terminaram um doutoramento (dados da PORDATA), em 2011 os analfabetos eram menos de 5%, quase 15% da população tinha formação superior e, nesse ano, 1845 pessoas terminaram um doutoramento (mais de metade mulheres). Quase tudo melhorou no pós-25 de Abril, incluindo a educação e a ciência. Foi um percurso sustentado de várias décadas, que deu frutos, por exemplo, no número de publicações científicas. Em 1981, por cada 100 000 habitantes foram feitas três publicações. Em 2013, este número já era de 168. Também na cultura científica conhecemos um grande impulso, no qual a Ciência Viva, editoras como a Gradiva e a Bizâncio e alguns meios da imprensa (como a VISÃO, o Expresso, o Público e o Diário de Notícias) têm um papel relevante. Assistimos a algum recuo nos últimos anos, fruto de condições conjunturais e opções políticas. Mas importa retomar a aposta naciência. E, como acreditava o ex-ministro José Mariano Gago (1948-2015), para isso é preciso “levar a ciência para a rua, levar a experimentação para a escola, trazer a argumentação científica para dentro dos debates de sociedade e para a decisão política democrática”.